A farsa do capitalismo verde e a luta por terra, território e autonomia — Entrevista com Îagûary
Nota: Essa entrevista foi realizada para uma matéria que escrevi em 2021 para o site O Joio e o Trigo sobre como o agroegócio e a indústria alimentícia se apropriam de um discurso social e ambiental para mascarar a devastação que eles causam. Agora ela está sendo publicada na íntegra com autorização do Joio e da entrevistada.
Link da matéria: https://ojoioeotrigo.com.br/2021/11/conectados-industria-e-setor-financeiro-usam-discursos-acoes-de-fachada-para-vender-responsabilidade-ambiental/
1: Como você se descreveria?
Sou Îagûary (pseudônimo), mais caminhante do que propriamente ativista de alguma causa específica. Por outro lado, tenho me movimentado mais frequentemente pelas questões socioambientais e das dissidências sexuais, circulando entre capital e interiores desse território delimitado e nomeado Ceará.
2: Poderia falar um pouco sobre as questões com que você tem se envolvido e causas em que tem atuado.
Tenho me envolvido nos últimos anos tanto em refletir e denunciar os estragos provocados pelas dinâmicas do agronegócio e da urbanização esterilizantes dos territórios, quanto também em fortalecer os vínculos e estruturas comunitárias que sejam potencialmente capazes de fazer enfrentamento a essa dinâmicas destrutivas para superá-las. Na prática isso significa compartilhar materiais de estudo e ações sobre construir autonomia alimentar, proteção e cuidado coletivo, eliminar mediações burocráticas em relação à gestão dos recursos, da água, da moradia, do uso e ocupação do solo no campo e na cidade. Esse tipo de coisa tem se dado basicamente em contextos de ocupações de terra, recentes ou consolidadas na forma de assentamentos, mas também através de iniciativas individuais como elaboração de planos, regeneração de fauna e flora e guarnição de sementes nativas para reproduzi-las em pequenas faixas de terra.
3: As empresas cada vez mais adotam um discurso sustentável e põe à venda linhas de produtos com nomes como “verde”, “sustentável”, “biodegradável” e “vegano”, além de divulgar suas ações em prol do meio ambiente e financiamento de projetos ambientalistas. Até que ponto você acha que isso é sincero e que é possível mudar as coisas através de mudanças na cultura corporativa? Quais são os limites dessas ações?
Eu acho que deveríamos partir de um princípio simples de bom senso que reconhece que qualquer iniciativa isolada, ou diluída nesse sistema socioeconômico predatório, é insustentável, ou pelo menos insuficiente. Imagina então quando essas iniciativas são reguladas pelas leis de mercado, que é o caso das empresas. O problema é que o senso comum, que muitas vezes se confunde com o publicitário, passa longe do bom senso, que poderia ser alcançado num simples exercício de lógica, ao percorrer o percurso das mercadorias, da extração dos insumos ao descarte. Mas aí quem tem essa oportunidade tátil de fazer esse percurso, senão por pesquisa, no grau de alienação e divisão do trabalho que é o dessa sociedade? Então veja, isso não necessariamente tem a ver com intencionalidade, se a pessoa proprietária da empresa que tem a iniciativa está ou não agindo sinceramente, ou de má-fé. Pode ser que não esteja de má-fé, ainda assim não estará realizando o fechamento do ciclo que tornaria algo possível de se sustentar, porque esse algo vai ser sempre parte mínima de um todo que ela não acessa.
Não vou dizer que a redução em escala de carne da dieta de uma população não possa ter um impacto positivo ou redução de impacto dentro de um certo aspecto climático ou de desertificação, mas é preciso entrarmos num acordo de que isso tem um limite e ele é muito restritivo, e que não se trata de uma solução mágica que possa ser viabilizada pelo mundo empresarial. Esses selos, como “orgânico” ou “vegano”, ao passo que podem significar eliminação de pesticidas, ou de maus-tratos de certos animais, não garantem que num caso não seja uma monocultura orgânica, ou em outro uma terra envenenada que produz vegano, ou seja, que nem sequer é vegano, porque mata varias espécies animais no processo.
Ao seguir participando da lógica mercantil através de uma empresa você continua fortalecendo e fazendo crescer uma economia que não pode mais crescer, porque o limite dela é o esgotamento dos recursos e dos modos de vida outros, humanos e não-humanos. O problema é que tanto o consumo quanto a produção nesses termos são questões de sobrevivência material pras pessoas nessa sociedade, é ao mesmo tempo promessa e garantia da vida imediata, mas também promessa e garantia de morte.
4: Qual é a sua opinião sobre os conceitos de desenvolvimento sustentável e consumo consciente? E até que ponto a escolha do consumidor pode influenciar na destruição ambiental provocada por empresas?
Antes de qualquer coisa acho que a gente deveria começar a fazer o esforço mental de desvelar esses fantasmas em forma de palavra como “desenvolvimento, crescimento, progresso, expansão, melhoria”. Essas palavras estão sempre vagando por aí nos discursos, e a gente aderiu a elas como se fossem autoexplicativas, num automatismo assustador, claro, porque todas elas são muito bonitas e cheias de esperança e promessa. Mas o que estamos querendo dizer de verdade quando pensamos em coisas como desenvolvimento? Desenvolvimento é o que essa sociedade experimentou nos últimos dois séculos com industrialização e urbanização? Esquece, já era, socioambientalmente é uma tragédia. Então, queremos desenvolver a tragédia? seria isso o desenvolvimento?
Todas essas palavras que citei no início são fraudes, justamente porque não há possibilidade de que o desenvolvimento desse modo de produção, consumo e excedente energético possa ser sustentado sem a gente mergulhar no abismo de milhares de novas doenças como a que estamos vivendo agora em versão pandêmica, escassez de alimentos, escassez de água potável, escassez de ar respirável, enfim, de vida vivível, ou sobrevida mesmo.
Portanto o único consumo que considero consciente, é o consumo que constrange e que mobiliza o consumidor a abandonar essa carcaça de sujeito consumidor da mercadoria. Mas não tem como ser individualmente nem isoladamente. Até isso ocorrer, se houver tempo, acredito que há caminhos, seja no cooperativismo seja na construção coletiva de autonomias e formas de relação direta com a terra capazes de desvalorizar o consumo, porém não sem muitas dificuldades, porque as contas pra pagar estão aí, os impostos, as demandas vitais daquilo que foi mercantilizado.
5: Como você tem observado as mobilizações de populações, grupos coletivos, grupos e ONGs que dialogam com a questão ambiental? Que mobilizações você acredita que esbarram em limites ou são até mesmo contraprodutivas? O que você acredita que tem oferecido caminhos e aberto possibilidades de mudança nesse sentido?
Não tenho como afirmar o que ocorre com todas essas mobilizações por motivos de limites pessoais mesmo, de não conhecer tudo o que tem acontecido e tá rolando de movimento social. O que conheço é que tem havido sim bastante luta socioambiental, mas parte significativa dela foi domesticada por essa temporada de governos progressistas de esquerda, e agora está sem ferramentas e sem vigor para atuar sob um governo de ultradireita.
De forma geral os limites que vejo são os limites do legalismo e da institucionalidade, que são tão naturalizados que faz muita gente esquecer que esses sistemas de justiça e essas instituições da forma Estado não foram construídas coletivamente nem para servir às debaixo, isso que chamamos de Democracia, Justiça, República, Estado de Direito. Sinto falta portanto de mais crítica na reflexão e na ação que considere a formação histórica de todo esse aparato, porque isso tem um efeito prático nos caminhos possíveis que as lutas sociais serão capazes de imaginar.
Então mobilizações que se esgotam no denuncismo, na retórica das petições para que as leis sejam cumpridas, ou na reivindicação por mais leis, acredito que devam ser visualizadas com muito cuidado e crítica sobre até onde isso vai, pois não somos nós que controlamos a aplicação dessas leis nem nunca seremos. Tentar colocar representantes no parlamento ou cargos do executivo pra fazer antagonismo e bloquear processos destrutivos, idem. Ficar só nisso cria uma distração sobre a dimensão dos jogos de força envolvidos nas questões, que é muito mais ampla e profunda, é um dispêndio gigantesco de energia em labirintos, com muitos becos sem saída. As mobilizações que vejo que nos abre novos caminhos, não necessariamente novas ou novíssimas, estão aí dentro e fora do território arbitrado como Brasil.
Falo das lutas guarani, sejam as urbanas em SP e RJ, sejam as do centro-oeste confrontando diretamente o agronegócio e madeireira, a luta Ka’apor, Guajajara e Awá no Maranhão, fortemente orientadas pela autonomia e autodefesa, as articulações entre povos e comunidades como a Teia dos Povos fundada na Bahia, mas que já se espalha no país, articulando aldeias, quilombos, movimento negro das periferias, campesinato, e os próprios movimentos camponeses históricos como LCP e MST, que seja por reforma ou revolução agrária tem insistido na necessidade da terra e do território pra que haja sopro de luta e vida contra esse sistema. Nas vizinhanças de Abya Yala ou América Latina, as lutas mapuches no limite entre Chile e Argentina, e zapatistas no México, mostram hoje a importância dos bloqueios e tomadas territoriais por ação direta e comunitária, então exemplos não faltam. A questão é que precisamos de mais e melhor, e pra ter mais e melhor, tem muito acadêmico, estudante, cidadão (de cidade mesmo), que precisa parar de ficar só estudando e achando legal o que fazem os movimentos, e começar a construir efetivamente os movimentos sociais, atuais ou novos. A lamentação também está obsoleta, não podemos nos dar ao luxo de ficar só lamentando.
6: O que você acha da ideia de decrescimento? Qual é a importância desse conceito nos debates ambientalistas?
Pra mim é como uma espécie de obviedade necessária que será constatada com muito atraso pelo conjunto da sociedade, e pode ser tarde demais. Não há condições de darmos continuidade a esse nível de consumo e produção, e de excedente energético. Isso, em termos de economia, implica necessariamente em decrescer, tirando de cena a centralidade que historicamente tem sido dada a indicadores como PIB. Fala-se muito que isso implica em aumentar a pobreza nas periferias globais, o que me parece errado de várias maneiras.
Uma é que o problema econômico estrito que gera precariedade nesse sistema é de distribuição, não de tamanho da economia, embora não seja de longe o único problema desse sistema, e outra é que a própria conceituação de pobreza alimentada nesse sistema é de caráter também ideológico, colonial e industrialista, baseando a ideia de precariedade ao dinheiro, ao patrimônio e ao tanto que você consome de bens duráveis, não duráveis e serviços das infraestruturas públicas e privadas. Gosto muito de lembrar isso com base na arquitetura, que é a minha área de (de)formação escolar: a pessoa se não tiver uma casa de cimento, aço e vidro, se não tiver mobiliário pré-moldado industrialmente e eletrodomésticos, ou mesmo água e luz chegando através de canos e fios de alguma usina, certamente já será enquadrada na pobreza, como se necessariamente a qualidade de vida dela fosse inferior àquela que tem tudo isso, mesmo que essa segunda viva na insalubridade doentia e alienante de um grande centro urbano. Temos que levar a sério a ideia de decrescimento, pois é a forma mais imediata que temos em escala de reduzir danos, que mais tarde serão muito mais abruptos e assustadores inclusive para ecologia humana, além das demais espécies.
7: Como você acha que a pandemia tem afetado a questão ambiental e alimentar? E como isso se reflete no debate e nas mobilizações entre pessoas envolvidas com essas questões?
Acho que a pandemia tem uma questão dupla, é que ao mesmo tempo ela vem de um problema ambiental, enquanto negatividade, e por outro lado ela tem um efeito de relativa desaceleração da economia global, portanto positivamente, até onde tenho lido, do ponto de vista de destruição ambiental, mas com impactos horrendos sobre a vida humana é claro. Não arrisco dizer que é a doença e a cura ao mesmo tempo, mas é doença e controle biológico e gatilho de remediação por parte da natureza, acredito. O problema é que ela recai indistintamente sobre os grupos humanos que têm pesos diferentes de responsabilidade no problema, além do que certamente virão mais e mais zoonoses. Portanto a cura é outra coisa, é um exercício de pensar e de fazer coletivo muito profundo e difícil que já teríamos de estar fazendo, dedicando tempo, de conversa mas também de silêncio para essa questão, que infelizmente não está em nenhuma cartilha escolar, nem nos ensinamentos intergeracionais das nossas famílias nucleares.
Sobre a questão alimentar acho que a pandemia detonou de vez com o acesso ao alimento nos centros urbanos, grandes ou pequenos, porque esses centros funcionam quase como prisões, em que se você não tem grana você não come nada, e as pessoas não estão conseguindo renda, não apenas pela pandemia e isolamento social claro, mas também por isso. O fato é que quem tem terra para subsistência e sabe produzir a própria comida, e/ou está conectada com demais terras que o façam, tem uma vantagem imensa nisso, porque garantiu algum nível de autonomia alimentar. As ações de solidariedade desses territórios com os cidadãos alienados na cidade, através de doações de alimentos, são grandes demonstrações disso, porém igualmente um sintoma daquilo que precisa mudar. A gente precisa lembrar a todo momento que comida não brota de pedaços de papéis nem do supermercado, que água não brota da torneira ou do registro da calçada, senão não romperemos o ciclo de dependência mercantil que ao mesmo tempo dissemina a fome e nos imobiliza sem sabermos o que concretamente defender.