Algumas reflexões sobre a cisnormatividade

Luísa Souza
5 min readMay 29, 2020

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Umas das coisas mais frustrantes de ser trans é ter que frequentemente justificar o seu gênero. Assim que o processo da transição se inicia, nos colocam contra a parede e nos demandam explicações para nossos gêneros, como se eles fossem questionáveis e possivelmente duvidosos. Isso quando simplesmente não o negam com frases como “Você é homem/mulher, aceita!” ou “Não dá para mudar seu sexo!”. Essa situação é ainda mais complicada para quem é não-binário e tem que lidar com perplexidade e incompreensão diante de sua vivência de gênero.

As respostas que fornecemos (quando temos paciência para isso) para essas perguntas são diversas, e vem de um processo de vivências e reflexões que fazem parte do entendimento e aceitação de nossos gêneros, assim como de leituras, estudos e diálogos nos quais buscamos respostas e ouvimos as histórias e reflexões de outras pessoas que também fizeram tais questionamentos.

Pessoas cis, por outro lado, não estão acostumadas a precisar justificar ou explicar o seu gênero, e quando questionadas sobre como elas sabem que são homens ou mulheres, quase sempre fornecem respostas que põe em evidência certa falta de reflexão sobre o assunto. Entre as mais comuns estão respostas como “Eu tenho um pau, sou homem ué”, “Eu nasci assim, sempre fui” e mesmo “Ué, não tá na cara?”.

Como é que indivíduos cis que justificam seus gêneros com explicações tão simplistas se acham com frequência no direito de nos questionar e exigir que justifiquemos nossos gêneros ou mesmo de negá-los? Isso só é possível quando a vivência de gênero cis é socialmente considerada algo evidente em si mesmo e que não é digno de reflexão enquanto os gêneros das pessoas trans são vistos como algo questionável, possivelmente duvidoso e que requer uma justificativa.

Essa visão a respeito do gênero faz parte da cisnormatividade, sistema que coloca os gêneros cis em uma posição privilegiada e torna tais gêneros a norma social. Essa posição privilegiada de tais vivências se deve a uma noção sobre o gênero que vê na vivência de pessoas cis uma suposta coerência que não seria encontrada na vivência de pessoas trans. Parte dessa suposta coerência tem como base dois enunciados principais que fizeram parte da construção histórica do gênero. Esses enunciados são:

1: O sexo biológico é binário e imutável, e esse é um fato natural.

2: O gênero também é binário, e ele é derivado do sexo. Ou seja: da fêmea se deriva a mulher e do macho se deriva o homem.

Tais enunciados não apenas fazem parte da construção social do gênero como também são invocados constantemente para questionar nossos gêneros. Afinal de contas, quantas vezes já não ouvimos falar que o ativismo trans está negando a biologia? Mas o gênero não se resume a biologia, e mesmo quanto nos atemos a ela, vemos surgir uma complexidade que não está presente nessa visão. Portanto, vamos ao primeiro enunciado.

O sexo biológico não se refere a uma única característica determinante, e sim a uma série de características que compõe o corpo humano. Entre essas características estão cromossomos, gônadas, genitais, hormônios e características sexuais secundárias (seios, pelos, distribuição de gordura, etc). A ideia dos sexo como binário pressupõe que as características “masculinas” e “femininas” estão todas agrupadas dentro das categorias “macho” e “fêmea”, categorias essas que não teriam pontos de encontro e intersecção.

Mas quando observamos os corpos humanos e tentamos enquadrá-los dentro de um binário macho-fêmea de acordo com essas características, vemos que vários corpos escapam a essa classificação binária. Entre tais corpos estão os corpos intersexo, que compõe cerca de 1,7% da população, e grande parte dos corpos trans.

Portanto, não há como sustentar uma noção binária do sexo se as características sexuais não se encontram necessariamente de forma binária na realidade. Aliás, a compreensão do sexo biológico como não-binário já é bem difundida na ciência, e hoje podemos encontrar múltiplos artigos em publicações científicas de renome assim como estudos em diferentes áreas da biologia afirmando a não-binariedade do sexo.

Além do mais, diversas características sexuais são mutáveis e sujeitas a alteração. A terapia hormonal pela qual muitas pessoas trans passam, por exemplo, provoca a alteração de características sexuais secundárias.

O segundo enunciado que citei afirma uma relação direta entre o sexo biológico e o gênero na qual fêmeas passariam a ser mulheres e machos passariam a ser homens. Dentro dessa visão, a característica biológica que adquire a principal função como significante do sexo/gênero é a genital. Por isso a incredulidade quando se fala de mulheres com pênis ou homens com vagina.

Mas um rápido olhar histórico e antropológico mostra que essa é apenas uma das formas de organizar o gênero, e que há muitas formas de organizá-lo que não dependem de critérios biológicos e que não o organizam em um binário. Quando os europeus chegaram ao território que hoje conhecemos como América do Norte, por exemplo, eles se depararam com mais de 130 povos que reconheciam mais de dois gêneros, com alguns chegando a reconhecer até sete gêneros.

Muitas dessas culturas e formas alternativas de entender o gênero ainda estão vivas, e muitos gêneros tradicionais que fogem do binário homem-mulher são relativamente conhecidos mundo afora. Alguns exemplos são as hijras da ìndia e as fa’afafine de Samoa

Ao observarmos sociedades que organizavam ou organizam o gênero de diferentes formas, vemos surgir não apenas uma diversidade de categorias de gêneros como diferentes critérios para categorizá-las o que mostra a arbitrariedade das noções de gênero que sustenta a cisnormatividade e que por ela é reforçado. Aliás, tais noções são uma construção histórica que foi se desenvolvendo e modificando ao longo do tempo, e que nesse momento está sendo questionada, modificada e subvertida em diversos contextos.

Portanto, não devemos nos focar demais em justificar nossos gêneros e as nossas vivências perante uma sociedade cis, embora possamos sim levantar as nossas vozes e contar as nossas histórias. Mais importante do que nos justificar é desconstruir as noções de gênero vigentes que não apenas sustentam a cisnormatividade como também outras formas de opressão com base no gênero cujos efeitos nocivos se estendem muito além daqueles que prejudicam as pessoas trans

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Luísa Souza

Travesti libertária (anarquista) jornalista e pesquisadora. Interessada em filosofia e em questões sociais e ambientais.