Lidando com o luto e enfrentando o ecocídio

Luísa Souza
10 min readJan 19, 2023

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Vivemos em meio a um ecocídio. À medida que o desmatamento, a mineração, a exploração predatória dos biomas, o aquecimento global e o acúmulo de contaminantes nas águas, no solo e no ar avançam e tomam proporções cada vez maiores a impulsionados pela expansão da economia capitalista, o planeta vai se tornando menos belo, vivo e habitável.

Abrir os olhos para essa destruição e lidar com sua realidade é um processo doloroso, e quanto maior o nosso amor pelas florestas, oceanos, pântanos e savanas e pelos seres que neles habitam, maior é a dor.

As estatísticas produzidas por cientistas que clamam em vão pela ação dos líderes globais são assustadoras e nos dão uma ideia da dimensão da destruição e do que já perdemos e seguimos perdendo. Mas essa perda não é quantificável, e muito mais terrível do que as estatísticas é a realidade do ecocídio que elas representam:

Onças, tatus e pássaros carbonizados no chão após uma queimada, paisagens tomadas por estradas e depósitos de resíduos tóxicos nas quais que não se vê uma única árvore onde há poucos anos atrás estava uma floresta boreal, peixes mortos flutuando entre a espuma em um rio após um vazamento químico e minas gigantescas brotando uma após a outra como feridas na terra.

O desastre afeta todos os seres, inclusive os humanos, e suas consequências já são sentidas por diversas comunidades há muito tempo. Os primeiros a serem afetados são os que vivem na terra. São os povos indígenas que há séculos estão lidando com a destruição de seus territórios e ataques à suas comunidades e culturas, comunidades de quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, pescadores, agricultores e outros que lutam para manter seus modos de vida.

Eles são também a linha de frente da luta contra o ecocídio e o colonialismo do qual ele é um produto, e muitos já lutavam a séculos antes do surgimento do movimento ambientalista contemporâneo. Mas uma hora ou outra, todos sentimos o impacto dessa tragédia, seja na forma de doenças, furacões, queimadas, secas ou enchentes que a cada ano se agravam.

Para mim, encarar essa realidade é também viver com uma sensação constante de luto, e o desafio de lutar por aquilo que amo passa também por aprender a conviver com ele sem ceder à tristeza ou ao desespero, o que nem sempre é fácil — mas já foi mais difícil.

A natureza sempre foi meu refúgio e maior fonte de inspiração. Uma das minhas primeiras paixões foi a água e o seu movimento . Aos 3 anos, nada me encantava mais do que observar o fluir dos rios e riachos e as ondas arrebentando no mar uma após a outra.

Logo veio o interesse pelos seres vivos, especialmente os aquáticos. Na minha infância, o meu lugar preferido era a praia. Eu passava horas escalando as pedras e procurando nelas e nas piscinas formadas pelo mar as criaturas que lá se escondiam: cracas e mexilhões, anêmonas, pequenos peixinhos ligeiros e esquivos e caranguejos que rastejam de um esconderijo ao outro em busca de alimento, sempre atentos à possíveis predadores.

Eu também gostava de nadar, indo ao fundo para além da arrebentação das ondas e dos surfistas onde eu prendia a respiração e mergulhava, soltando o ar aos poucos e sentindo a imensidão do mar à minha volta enquanto descia para as profundezas testando quão longe eu conseguia chegar. De volta à superfície, eu curtia a solidão e observava a praia e as pessoas distantes e as gaivotas voando acima, sentindo meu corpo subir e descer com as ondas que passavam.

O amor pela Mata Atlântica também tem me acompanhado ao longo da vida. Tenho muito carinho pelas recordações de dias gastos caminhando pela floresta e sentindo a exuberância das suas plantas, o canto e as cores dos pássaros, e o cheiro de terra molhada e matéria em decomposição, sendo surpreendida por encontros inesperados com todo tipo de ser.

Tendo vivido em São Paulo durante a maior parte da minha vida, sempre senti na cidade saudades da floresta, do mar e das montanhas na cidade. Mas mesmo na sua cacofonia, entre seus labirintos de concreto e aço, nunca deixei de me alegrar com a vida que brota entre a calçada, balança ao vento, rasteja e salta pelas ruas e se abriga nas árvores e arbustos.

Crescer foi para mim um processo de desenvolver essa relação com o mundo e os seus ciclos e seres, mas envolveu também me tornar cada vez mais ciente da sua degradação.

No começo, isso se deu pelo contato com diferentes manifestações dessa degradação: uma praia coberta de lixo, um trecho de floresta desmatado, a paisagem da cidade de São Paulo dominada pelo concreto e cruzada por rios onde se despeja esgoto e resíduos químicos. A escala era local mas o contato direto, e sempre senti isso como uma agressão ao que eu amo, que é também uma agressão à uma parte de mim.

Depois, fui tomando consciência de problemas de escala cada vez maior: a poluição dos oceanos, a destruição das florestas tropicais, a extinção em massa de espécies, o aquecimento global e o derretimento das geleiras. Começava a emergir para mim a dimensão da destruição e a urgência da mudança, e eu era tomada por um misto de tristeza e de raiva — como eles se atrevem? Porque ninguém para eles?

Ainda assim, as conexões entre esses problemas não estavam claras para, e nem o que fazer. Eu me sentia impelida a agir, mas era também preciso entender, e assim fui atrás disso. As ligações entre as questões políticas, nosso modo de produção e a exploração das pessoas e outros seres e a destruição da biosfera rapidamente ficaram evidentes.

À medida que eu ligava os pontos as conexões iam surgindo, a economia capitalista emergia como inimiga da vida. Afinal de contas, um modo de produção que busca crescer infinitamente e cresce exponencialmente produz uma destruição crescente, o que a torna incompatível com qualquer tipo de convivência saudável com a vida e os ciclos deste planeta

O capitalismo é um devorador de mundos. E precisamos pará-lo a qualquer custo.

A sua história é também a história de uma máquina, um monstro de muitas cabeças, pernas e tentáculos. O esqueleto do monstro é de aço, madeira, cobre e concreto. Seus músculos são de plástico e borracha, e em suas veias corre petróleo, diesel e correntes de eletricidade. Ele não tem vida mas se alimenta dela e através dela move suas engrenagens e expande seu alcance.

Sua expansão — lenta a princípio — é a proliferação das cidades (cada vez maiores), fábricas, minas a céu aberto, poços de petróleo, cabos subterrâneos, postes de eletricidade, monoculturas agrícolas, câmeras de vigilância, prisões, centros de detenção, campos de concentração e dos trens, ônibus e metrôs onde os trabalhadores se amontoam para serem levados aos locais de onde eles alimentarão o monstro-máquina com sua força de trabalho.

Ela é também o fim de povos, culturas e comunidades e de florestas, rios e tundras. O monstro devora mundos, pessoas, árvores e montanhas e vomita resíduos: plástico, metal retorcido, vidro, pesticidas e produtos químicos de todos os tipos que se acumulam no solo e viajam pelos rios e nuvens. E assim ele cresce.

Mas essa expansão é também a história daqueles que resistiram — e seguem resistindo. Enquanto os que afirmam que o monstro é bom e chamam o seu crescimento de “progresso” e os que dizem que ele pode ser domado e transformado em uma força à serviço do povo disputam pelas suas rédeas, outros lutam pelo seu fim, ou ao menos para frear o seu avanço.

A luta é pela vida, e para parar a devastação que avança à medida que o monstro se arrasta pela terra. É dela que depende a nossa sobrevivência futura em um momento em que a degradação da biosfera já se faz sentir pelo mundo todo e nos coloca frente a frente com a possibilidade de nossa própria extinção como espécie.

Mas não é apenas uma questão de sobrevivência. Lutamos também por amor, e para proteger aquilo que amamos. Esse amor nos dá força e determinação e alimenta nossa luta. E assim temos lutado, como outros têm há gerações. E tivemos muitas vitórias.

Apesar disso, o devorador de mundos segue seu curso, e a cada ano que ele avança e a vida retrocede. E o mesmo amor que nos motiva a lutar é o amor que faz doer quando vemos aquilo que amamos ser destruído.

Parte do problema é a questão da escala. Nós não somos confrontados apenas com a destruição que vemos e que nos cerca — e que não é pouca — mas também com a que nos bombardeiam a televisão, os jornais e os computadores todos os dias. A expansão do capitalismo industrial pelo planeta gerou uma crise de escala global que se manifesta em uma série de crises locais, e a sua dimensão nos intimida e nos faz sentir impotentes.

O sentimento de impotência aumenta quando encaramos o fato de que apesar de nossos esforços não há nenhuma perspectiva de superação do capitalismo a nível mundial no horizonte em um momento em que grande parte da vida desapareceu nas últimas décadas e grande parte do que resta desaparecerá nas próximas no ritmo atual. E isso gera sofrimento.

Assim, enquanto alguns se negam a encarar essa realidade e decidem ignorá-la ou se munir de falsas esperanças, outros cedem ao desespero e definham frente ao futuro sem perspectivas. Alguns abandonam a luta depois de anos de dedicação a ela, desiludidos e amargurados. Outros continuam pela inércia mas apenas se desgastam.

Há também os que mergulham nos entorpecentes como forma de amortecer a dor, os que buscam por formas de fuga e os que encontram válvulas de escape que desembocam em becos sem saída. E assim se vão muitos dos nossos.

Mas as coisas não precisam ser assim.

É preciso acolher a nossa dor e raiva e transformá-la em combustível para nossas lutas, evitando as armadilhas que nos levam ao derrotismo e desespero ou, no outro polo, a ilusões que conduzem à inação, falsas soluções ou a frustração quando nossas expectativas caem por terra .

Se o nosso amor faz doer quando vemos o que amamos sendo destruído e aprisionado, ele também é uma chama que nos dá forças para lutar em sua defesa.

A escala da crise global nos faz sentir impotentes por não termos quase nenhuma influência a esse nível, mas há muito o que podemos mudar ao nosso redor. Se o nosso poder é pouco, ele não é nada, e ele pode sempre ser aumentado à medida que desenvolvemos nossas capacidades e fazemos alianças.

Se o monstro espalhou seus tentáculos por todo o mundo, podemos enfrentá-lo onde estamos. Isso envolve olhar ao nosso redor e refletir sobre as possíveis frentes de luta com as quais podemos nos engajar e quais são as nossas capacidades e desejos para então avançar.

Também envolve aceitar que por maior que sejam os nossos esforços e as nossas lutas, não há nenhuma garantia de que seremos capazes de evitar um grande colapso ou mesmo a nossa extinção. Mas temos a certeza da derrota se não fizermos nada, e enquanto mais lutarmos, mais longe chegamos e maiores as nossas chances.

E se no fim das contas o que nos espera é a derrota, não é melhor vivê-la lutando pelo que amamos ao lado daqueles que compartilham as nossas lutas do que esperando e observando passivamente?

E se esse for o caso, isso não significa que o que alcançamos foi em vão. Cada vida salva, cada hectare de floresta preservado ou regenerado, cada barragem ou oleoduto impedido, território defendido, casa ou fazenda ocupada e experiência comunitária desenvolvida e vivida vale a pena, e jamais será em vão.

Mas só saberemos do que somos capazes e quão longe podemos chegar tentando. Assim, escolhemos as nossas lutas e avançamos com determinação e o coração leve. Olhamos para o que está à nossa frente e ao nosso redor e direcionamos nossa energia para as situações e desafios concretos que encontramos em nossa trajetória.

Ao longo do caminho, vamos tecendo alianças e forjando elos umas com as outras e com os outros seres, elementos e territórios e seguimos lutando, cuidando, criando, construindo, cultivando, protegendo e regenerando. Choramos com nossas derrotas e com aquilo que perdemos, vibramos com nossas vitórias e conquistas e seguimos em frente.

Por maior que seja o poder do capitalismo global, ele nunca será total, e por todos os cantos brota a resistência. Apesar do conformismo e submissão que tentam nos incutir, enquanto existir humanidade, existirão as ingovernáveis que se recusam a aceitar essa ordem social. E frente à devastação gerada pelo devorador de mundos, abrimos os nossos olhos para a força e capacidade de regeneração da vida.

Ervas brotam e pululam em terrenos baldios, protegendo o solo e criando as condições para outras formas de vida que virão. Pássaros fazem ecoar sua melodia das árvores de uma agrofloresta onde antes o sol fazia arder o solo nu e rachado. Matilhas de lobo correm livres e selvagens pelas ruínas de Chernobyl tomadas pela floresta.

E quando o mito capitalista de um crescimento infinito se estilhaçar e o seu processo autofágico levar à sua queda, a vida há de brotar onde ele retroceder e seguirá crescendo bela e triunfante — com ou sem nós. Enquanto isso, seguimos lutando pelo seu fim.

Gostaria de acreditar que um dia, em um futuro (quem sabe) não tão distante, seremos capazes de conviver com as outras formas de vida como muitos povos já foram e muitos ainda são.

Não tenho como saber se esse dia chegará, ou mesmo se é possível que chegue a esse ponto, mas sei que enquanto existir opressão existirá resistência e a vida seguirá escapando por entre as grades que constroem para aprisioná-la.

E para mim isso já basta.

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Luísa Souza
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Written by Luísa Souza

Travesti libertária (anarquista) jornalista e pesquisadora. Interessada em filosofia e em questões sociais e ambientais.

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