Trans no Reino Unido: O que diabos nós vamos fazer?
Tradução do ensaio “Trans in the UK: What the Hell Are We Going To Do?”, escrito por Harry Josephine Giles
Nota de tradução: Esse ensaio aborda a crescente transfobia no Reino Unido e como ela se desenvolveu e através de que grupos e por quais táticas. Ele também aborda a situação de pessoas trans no Reino Unido e como elas tem se mobilizado, apontando os limites de certas estratégias e oferecendo uma série de sugestões e propostas concretas para superar esses limites e construir um movimento interseccional e de base que coloque o poder nas mãos das pessoas mais afetadas diretamente pelas questões em pauta.
Acredito que além de ajudar a esclarecer a situação atual das pessoas trans na Inglaterra, ele também nos fornece reflexões importantes que podem ser aplicadas em outros contextos sobre como grupos transfóbicos se fortalecem e também sobre como podemos não apenas combater essa transfobia mas também fortalecermos uns aos outros em nossas lutas e vidas.
Nos espaços sociais trans no Reino Unido, as emoções que eu encontro com mais frequência são medo, incerteza e exaustão. Eu encontro muitas pessoas trans remoendo derrotas políticas e cobertura obsessiva por parte da mídia. Eu vejo uma resposta física: um aceno de mão agitado pra “tudo que está acontecendo” e um grito. Isso é uma merda.
Por um lado, muitas coisas ruins aconteceram e é correto e compreensível se sentir péssimo perante tudo isso, ainda mais em tempos de assassinato social por conta da pandemia e fascismo ascendente. Por outro lado, essa não tem que ser a única forma de reagir. Espaços sociais trans e movimentos sociais podem ficar presos em reações negativas contra todas as coisas ruins que estão acontecendo e esquecer de lutar por vitórias e celebrá-las.
A fixação em todas as coisas ruins que falam sobre nós e que fazem com nós é um ciclo vicioso autodestrutivo. Nós nos limitamos a ficar sempre reagindo, nunca agindo, sempre miseráveis e nunca nos libertando. Eu vi um tweet de um jornalista estadunidense recentemente que, citando um artigo a respeito de Keir Starmer (o líder atual do partido trabalhista) sobre transformar o Partido Trabalhista no “partido da família”, disse apenas que “as pessoas trans no Reino Unidos estão ferradas”. Acreditar apenas nisso, focar apenas nisso é o que nos ferra. Nós não estamos ferrados, estamos sendo ferrados, e podemos lutar contra isso e lutar pela porra da libertação.
Então, esse ensaio é uma análise geral de onde nós estamos e um resumo de algumas ideias que eu tenho sobre o que os movimentos trans no Reino Unido estão fazendo. Na primeira parte, eu falo sobre algumas coisas pelas quais nós podemos lutar:
- Por saúde para a população trans desvinculada do sistema de Clínicas de Identidade de Gênero (GIC).
- Por recursos para vidas trans e contra a pobreza trans.
- Por alternativas a um sistema injusto.
- Pela libertação trans.
Na parte dois eu falo de:
- Quem está contra nós e como eles se tornaram poderosos.
- Quais são os pontos fortes do nosso movimento e os seus limites.
- Formas de organização que podem nos libertar
De forma geral, meu argumento é que:
- Pessoas trans no Reino Unido estão sendo ferradas não apenas pela força da transfobia organizada, não apenas pelo fato de que a transfobia organizada tem sido usada pela classe dominante e por movimentos de direita, mas também pela falta relativa de organização de base trans.
- Que muitas pessoas trans estão investidas em ONGs e caridades, e que ao lutar por direitos e reconhecimento simbólico nós não temos investido o suficiente em construir movimentos e conquistar recursos para pessoas trans.
- Que as táticas que os movimentos trans no Reino Unido tem usado ultimamente - lobbying político por direitos e campanhas reativas contra a transfobia organizada - não tem conseguido conquistar direitos e nem parar a transfobia, então nós precisamos de táticas melhores.
- Mas que já há um movimento pela libertação trans cheio de ideias empolgantes e ótima organização. Algumas táticas que movimentos trans podem usar incluem: construir organizações de ajuda mútua, construir instituições e estruturas que fortaleçam as vidas trans, conduzirmos nossas próprias pesquisas, direcionar campanhas a instituições específicas e usarmos mais protestos e táticas de ação direta.
No fim das contas, o que eu estou dizendo é: construa um grupo trans local onde você está, lute diretamente e localmente por recursos para pessoas trans e conecte esses grupos em um movimento nacional de baixo pra cima e centrado na libertação trans.
Estou escrevendo isso sendo uma mulher na Escócia com pouco mais de 30 anos, autista, de classe média e com uma situação de emprego precária. Na minha adolescência e até os vinte e poucos anos eu estive envolvida em ação direta ambiental no contexto de movimentos anarquistas mais amplos: essa é minha herança e treinamento político.
Eu também estive envolvida em graus maiores ou menores em campanhas de solidariedade com imigrantes e contra fronteiras, antifascismo, construção de coletivos e centros sociais, campanhas contra armas nucleares, organizações de ajuda mútua e sindicalismo radical - e também com o movimento pela independência da Escócia e com o Partido trabalhista, tendo abandonado ambos. Eu menciono essas identidades e experiências para você entender de onde eu estou falando e quais são as minhas tendências.
Eu não tenho e nem tenho como ter as respostas. Eu uso “nós” para simplificar as coisas, mas não existe nenhum “nós” trans universal, apenas muitas pessoas trans. E nenhuma das ideias nesse artigo são novas, e todas elas surgiram através das minhas conversas com ativistas que já estão fazendo esse tipo de trabalho. Existem muitas, muitas pessoas trans fazendo o tipo de trabalho do qual eu falo. Então isso não é um manifesto ou um guia completo de como construir um movimento. É apenas um monte de ideias que eu tenho sobre o que as pessoas trans no Reino Unido poderiam fazer mais que eu estou compartilhando para que as pessoas falem mais sobre essas ideais.
Respostas só surgirão se nós conversarmos juntos, discutirmos uns com os outros e construirmos juntos um movimento a partir de várias posições diferentes. Discorde de mim, por favor. Aponte meus erros e pontos-cegos, escreva seus próprios textos e, o que é mais importante, se junte com outras pessoas trans na sua área e descubra o que diabos vocês vão fazer. A gente consegue.
Esse é um artigo longo, então eu incluí uma tabela de conteúdos abaixo e também um sumário curto no fim de cada secção. Eu terminei com uma lista de organizações trans de base às quais você pode se juntar e apoiar ou nas quais você pode se inspirar. Se você tem uma renda decente e um nível razoável de conforto e acha que esse é um bom artigo, eu realmente gostaria que você fizesse uma doação pra uma dessas organizações.
O artigo está sob a licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License. Isso significa que você pode imprimir, adaptar, compartilhar e traduzir de qualquer forma que você quiser, desde que você não ganhe dinheiro com isso. E você não precisa pedir permissão. Se você gostaria de colocar o artigo em uma publicação que estará a venda, entre em contato comigo.
Parte 1: Onde nós podemos vencer
Parte 2: Como vencer
c)Quais são as forças da libertação trans?
d)Quais estratégias a libertação trans deve usar?
Parte 1: Onde nós podemos vencer
a)Saúde
A saúde trans no Reino Unido está em crise. O tempo na lista de espera para conseguir atendimento em uma clínica de identidade de gênero do sistema nacional de saúde varia entre dois e cinco anos, e em algumas partes do Reino Unido as clínicas não estão atendendo pacientes no momento. E o tempo das listas de espera está aumentando. Além do mais, quando você consegue atendimento em uma clínica o cuidado é rígido e inconsistente.
Além disso, pacientes tem pouco controle sobre as opções médicas, pouco apoio terapêutico, preconceito constante contra a transgeneridade não-binária e qualquer desvio das expectativas cis, práticas excludentes contra pessoas com deficiência, pessoas neurodivergentes e pessoas que não são brancas, hostilidade e ignorância por parte de atendentes e um sorteio com base na sua localização de que atendimentos são fornecidos pelas clínicas.
Tratamentos para pessoas com menos de 16 anos foram brutalmente interrompidos por um pânico moral nacional. Preconceito contra pessoas trans ao lidar com serviços de saúde é endêmico, e pessoas trans são frequentemente excluídas de serviços essenciais para seus corpos, com uma crise afetando em particular pessoas transmasculinas. Além do mais, todas as pessoas trans enfrentam fortes barreiras para obter liberdade reprodutiva.
Opções privadas existem, mas elas são caras e são uma forma de clínicos de gênero tirarem mais dinheiro de pessoas trans, além de excluírem grande parte da classe trabalhadora. Além do mais, práticas privadas que buscam fornecer modelos alternativos de serviços de saúde para pessoas trans como diagnóstico por telemedicina ou consentimento informado sofrem campanhas hostis por parte de instituições médicas e da mídia.
Uma das respostas mais comuns a essa crise é pedir por mais investimento no sistema de Clínicas de Identidade de Gênero junto com o uso de crowdfunding para pessoas trans individuais e doações para entidades privadas. Nada disso vai resolver essa situação. Mais financiamento para as clínicas de identidade de gênero aumentam a garrafa mas não a boca da garrafa. Apenas um certo número de pessoas consegue se espremer e entrar. O crowdfunding é necessário agora, mas é raro fazer um crowdfunding com sucesso se você é negro, PCD, da classe trabalhadora ou apenas se recusa a fornecer uma narrativa trans fácil para um público cis. E fornecer dinheiro a alternativas privadas tira o poder das mãos das pessoas trans e dá poder aos médicos de instituições privadas.
O problema fundamental com o sistema de Saúde do Reino Unido é que a maior parte do tratamento de saúde que as pessoas precisam está atrás das portas das Clínicas de Identidade de Gênero. Você tem que receber um diagnóstico oficial antes de poder ter acesso a qualquer coisa. E não se trata apenas de cirurgias e hormônios: coisas como terapia de gênero informada, treino de voz e remoção de pelos estão todos atrás dessas portas.
Um exemplo absurdo: eu não consigo fazer eletrólise através do Serviço Nacional de Saúde porque para fazer eletrólise você tem que deixar os pelos crescerem, ir a um local oficial para tirar uma foto oficial para que a foto seja analisada por um oficial que decide se você é uma pessoa peluda o suficiente. E nada disso é possível em uma pandemia. Mas tudo isso é caro e desnecessário. Se alguém diz que a sua saúde mental é afetada por pelos faciais, essa é toda a informação de que você precisa para decidir se essa pessoa precisa de apoio para a remoção de pelos.
Da mesma forma, o tratamento fonoaudiológico pode trazer muitos benefícios para a saúde mental de pessoas trans, além de ser uma intervenção que não é cara e nem controversa que totalmente reversível e que um médico já pode prescrever. Mas alguns fonoaudiólogos exigem um pedido de uma clínica de identidade de gênero, e muitos médicos nem sabem que isso é possível. Onde eu moro, intervenções fonoaudiológicas afirmativas de gênero não são nem sequer financiadas: algumas equipes de fonoaudiólogos conseguem espremer essas terapias entre seus compromissos porque eles acreditam nelas.
Ao lidar com o sistema de saúde pública, nós deveríamos estar lutando para que a maior quantidade possível de atendimentos não fiquem atrás das portas das clínicas de identidade de gênero e se tornem prática geral. Nós também precisamos lutar por um entendimento melhor de questões de saúde trans na prática geral e especialmente em serviços de saúde relacionados ao gênero.
Isso vai necessitar de muito trabalho duro por parte de conselhos de saúde e associações de profissionais de saúde, e vai precisar também de grupos ativistas e ONGs e clínicos aliados. Isso vai necessitar financiamento, mas menos financiamento do que é necessário dentro do sistema de clínicas de identidade de gênero.
A luta por hormônios e cirurgia será mais difícil, mas há várias formas de apoio com as quais podemos começar. Vai ser necessário muito treinamento para profissionais de saúde e muita pressão para conseguir o apoio de profissionais de saúde hostis. Além do mais, muitas vezes uma pessoa trans não consegue nenhum encaminhamento de um profissional por uma questão de saúde porque o médico acha que é uma “coisa de gênero” e manda ela de volta para uma Clínica de Identidade de Gênero (nós chamamos isso de “a síndrome do braço quebrado trans”).
A boa notícia é que tudo isso é possível e muito já está acontecendo. Na Inglaterra, três novas clínicas de gênero foram abertas que empregam pessoas trans, que adotam um modelo de transição de consentimento informado focado em pacientes e que se foca menos na psiquiatria e mais em práticas gerais na medida do possível. O tempo de espera nessas clínicas é de semanas ao invés do padrão de anos de espera.
Essas clínicas não são perfeitas e elas são limitadas ao que podem fazer. Elas não podem, por exemplo, prescrever algumas formas de tratamento que mulheres trans preferem como injeções de estrogênio ou progesterona, mas pelos relatos iniciais que estão surgindo, elas são um grande passo à frente. Nós precisamos de mais clínicas dessas por todo o Reino Unido.
Ao mesmo tempo, nós precisamos construir sistemas de saúde e recursos fora do estado feitos por pessoas trans e para pessoas trans. Nós precisamos de máquinas de remoção de pelos administradas coletivamente e clínicas de eletrólise trans onde pessoas trans que estão recebendo a terapia estão também sendo treinadas para administrá-las. Eu já conheço pessoas fazendo essas duas coisas.
Nós precisamos de cooperativas de fonoaudiologia, e também de informações confiáveis vindas de pessoas trans sobre diferentes opções hormonais com base no princípio de redução de danos. Muitas pessoas trans, se não a maioria, já administram seus hormônios por conta própria ao menos até certo ponto. E está ficando cada vez mais comum que pessoas atendidas por clínicas de identidade de gênero já cheguem com anos de terapia hormonal. Mas as formas de fazer isso são pequenas, escondidas e locais, com pouca informação pública disponível.
Também precisamos de pesquisas conduzidas por pessoas trans sobre opções de saúde e demandas por melhores pesquisas por parte de médicos e acadêmicos. Até onde eu sei, por exemplo, não há nenhum estudo acadêmico sobre a eficácia de diferentes regimes hormonais para mulheres trans: nós temos diversas formas e dosagens para administrar estrogênio, a questão da progesterona e uma variedade de opções para reduzir a testosterona. Apesar disso, a informação disponível é incompleta e enviesada, baseada muitas vezes tanto em impressões e preferências quanto em estudos acadêmicos.
Projetos como o transfemscience.org mostram o que é possível com uma abordagem coletiva e feita por pessoas trans. Pesquisas mais aprofundadas nos dão mais autonomia sobre a nossa saúde e fornecem opções além do binário para pessoas trans, além de integrar nossos tratamentos de saúde na nossa saúde física e mental a longo prazo.
A situação de jovens trans no Reino Unido - uma interrupção marcante de serviços de saúde na Inglaterra e no País de Gales, ameaças a serviços por parte de políticos e grupos anti-trans na Escócia, fornecimento insignificante na Irlanda do Norte - vai precisar de uma ação legal mas também de uma resposta comunitária.
Apesar de o resultado do caso Bell vs Tavistock ter tido um efeito chocante, a reação ao caso mascara o fato de que a situação já era terrível para jovens trans: listas de espera enormes, avaliações exaustivas e critérios limitantes para apoio, seleção intensamente excludente. O cuidado oferecido pelas clínicas de identidade de gênero geralmente só é acessível para jovens trans com muito privilégio social e apoio por parte dos pais, e isso também é verdadeiro para serviços privados.
A luta por serviços de saúde para jovens trans é frequentemente centrada na liderança, histórias e desejos dos pais, que frequentemente simplificam demais a experiência trans. Nós raramente ouvimos as vozes dos jovens trans. Essa luta também se beneficiaria de tirar o poder das clínicas de identidade de gênero e inserir esses serviços na prática geral e organizações comunitárias, mas essa mobilização deve empoderar jovens trans.
Esse é apenas o começo. Eu não falei sobre questões como serviços de saúde para pessoas intersexo que também são trans, o abuso de pessoas intersexo de forma mais geral no sistema de saúde, apoio para pessoas trans cuja identidade muda ao longo do tempo, armazenamento de gametas, a discriminação enfrentada por pessoas trans em serviços relacionados a saúde sexual e reprodutiva, as políticas gordofóbicas envolvidas nos serviços de saúde trans, o encarceramento de pessoas trans em detenção psiquiátrica e muito mais. Esses artigos também precisam ser escritos. Para conseguirmos serviços de saúde em todas essas áreas nós precisamos mudar como os serviços de saúde trans são providenciados ao desmantelar a seleção das clínicas de identidade de gênero e construir redes de ajuda mútua feitas por pessoas trans.
Resumo
- A saúde trans está em crise porque grande parte dela é limitada pela seleção das clínicas de identidade de gênero e há ainda pouco conhecimento sobre isso na prática geral.
- Pessoas trans precisam lutar para inserir os cuidados de saúde para a população trans nos serviços de saúde de forma geral e para fazer com que as intervenções sejam disponíveis de forma mais ampla.
- Nós precisamos de projetos feitos por pessoas trans que nos ofereçam mais informações e controle sobre nossa saúde.
- Isso vai precisar de esforços junto com e também em oposição ao sistema de saúde, assim como a construção de projetos independentes de ajuda mútua.
b) Recursos
Pessoas trans experienciam a pobreza com uma frequência extremamente alta. Nós temos mais chances de sermos da classe trabalhadora, de estarmos em condições de pobreza e morando nas ruas. Nós temos mais chances de sermos coagidos a trabalhar em condições precárias, perigosas e exploratórias e no mercado negro e cinza. Pessoas trans negras e pcd são ainda mais afetadas.
Isso é causado por abuso e abandono familiar, discriminação no mercado de trabalho e serviços públicos, custos da transição em obstáculos no acesso a recursos e a justiça. A situação se torna pior devido a discriminação em organizações que deveriam funcionar para aliviar a pobreza e dar poder a classe trabalhadora. Isso inclui serviços de crise, abrigos, bancos alimentares, sistemas de benefícios e sindicatos.
Eu vejo três formas principais de lidar com a pobreza trans: lutar contra a discriminação em serviços existentes, inserir pessoas trans em mobilizações políticas de classe e construir novos serviços específicos para pessoas trans. Tudo isso já está sendo feito, mas esse raramente é o foco do diálogo público ou midiático sobre a política trans.
Trabalhar com os serviços que já existem significa participação trans em projetos de apoio a moradores de rua, bancos de alimentos, abrigos para vítimas de violência doméstica, serviços de redução de danos e muito mais. Precisamos fortalecer projetos que apoiam quem está em situação de pobreza e construir solidariedade entre movimentos trans e da classe trabalhadora, e também fazer com que esses projetos e movimentos tenham entendimento sobre pessoas trans.
Isso deve ir além de um treinamento básico de diversidade, e deve envolver treinar os serviços para lidar com questões específicas que as pessoas trans enfrentam. Os serviços de redução de dano envolvendo drogas recreativas e uso de esteróides, por exemplo, precisam entender as práticas de saúde faça-você-mesmo adotadas por muitas pessoas trans e entender como eles podem contribuir (fornecendo agulhas limpas, por exemplo).
Abrigos para pessoas em situação precária precisam evitar o monitoramento dos documentos de identidade de forma que barre o acesso de pessoas trans. Serviços ligados a violência de gênero precisam expandir o seu conhecimento de abordagens para lidar com trauma específicas para pessoas trans.
Ao fazer isso, nós precisamos identificar onde e porque há discriminação contra pessoas trans nesses serviços, entender como isso é parte do poder sobre a classe trabalhadora e apoiar os trabalhadores ao resistir contra líderes preconceituosos. A revelação recente da Gal-dem sobre a transfobia no setor que lida com violência de gênero analisou o conflito entre sindicatos e a liderança. Emi Koyama tem escrito sobre os problemas do movimento de sobreviventes de abuso por décadas, e ela mostra como a discriminação anti-trans caminha de mãos dadas com o racismo, o preconceito contra mobilizações de trabalhadores sexuais e contra usuários de drogas.
As pessoas trans precisam então participar de movimentos da classe trabalhadora, associações de inquilinos, sindicatos, campanhas contra a pobreza e a favor de programas sociais e movimentos por moradia. O mesmo se aplica aqui: lutar contra a pobreza, construir solidariedade e fortalecer o entendimento sobre questões trans nesses movimentos.
O que eu estou argumentando aqui não é que tudo tem que ser primeiramente uma campanha por direitos trans: quando uma a cada 4 pessoas trans já esteve sem moradia, a luta por moradia é uma demanda da libertação trans. E sem pessoas trans envolvidas nessas demandas, os serviços criados têm muito mais chance de continuar discriminando contra pessoas trans.
Mas entre movimentos sociais, haverão conflitos com os quais as pessoas trans vão ter que lidar, como no setor de violência de gênero. Há, por exemplo, muita transfobia organizada no movimento sindical, e as pessoas trans que estão lutando por direitos de trabalhadores trans podem enfrentar hostilidade e obstrução por parte de representantes sindicais.
Superar problemas como esses não deve ser apenas a tarefa de pessoas trans, mas é uma tarefa que precisa ser feita. A solidariedade significa lidar com os conflitos quando você pode e estabelecer um limite onde é necessário. Nesse processo, é importante entender que quanto mais institucionalizados ficam os movimentos e enquanto mais eles fazem parte do estado, mais potencial ele tem de institucionalizar a discriminação contra grupos oprimidos que eles deveriam apoiar.
Um grupo feito para apoiar moradores de rua financiado pelo estado pode, por exemplo, delatar imigrantes ao governo, o que é mais provável no caso de imigrantes que não são brancos. A discriminação contra pessoas trans no setor de violência de gênero vem muitas vezes de líderes bem pagos que também se opõe a mobilizações de trabalhadores sexuais. Uma das formas de combater isso é se certificar de que os projetos são liderados por aqueles afetados, resistindo a um modelo de “salvador” de classe média. O trabalho de apoio a pessoas trans sem moradia pode, por exemplo, ser liderado por pessoas trans que estão ou já estiveram nessa situação; o sindicalismo trans pode ser liderado por trabalhadores trans.
Isso significa que nós precisamos de uma terceira abordagem: construir serviços de ajuda mútua específicos para pessoas trans e que combatem a pobreza. Já há iniciativas como o Outside Project de Londres que está administrando um refúgio LGBTIQ+; o Ubuntu de Glasgow que envolve a participação de pessoas trans e trabalhadoras sexuais na criação de um abrigo para mulheres e pessoas não-binárias sem financiamento público; e o fiverforfive, que organiza redistribuição de renda para pessoas transfemininas e causas.
Mas no Reino Unido, esses projetos são poucos e tendem a ter muito menos atenção e apoio de pessoas trans e aliados cis do que, por exemplo, ensaios fotográficos que geram visibilidade midiática. Nós precisamos de uma expansão dramática desse tipo de trabalho. E à medida que nós criamos mais recursos para pessoas trans, nós precisamos entender os custos e benefícios envolvidos no processo de providenciar serviços e construir um movimento.
Projetos de base com recursos próprios têm mais chances de serem focados nas necessidades dos mais oprimidos e de combinar melhor o fornecimento de serviços com o ativismo político, mas também tendem a ter menos longevidade e resiliência. Por outro lado, caridades e projetos financiados pelo estado frequentemente duram mais e fornecem serviços mais consistentes mas de forma despolitizada e que pode em alguns casos perpetuar a opressão ao invés de combatê-la.
Um movimento trans que não está diretamente combatendo a pobreza trans está condenado à irrelevância. Um movimento que escolhe dar prioridade a reformas legais que privilegiam pessoas trans que estão entre as mais privilegiadas (quem diabos tem uma aposentadoria?!) ao invés de lidar com a pobreza trans está trabalhando contra os interesses da maior parte das pessoas trans.
Resumo
- Lutar contra a pobreza que afeta várias pessoas trans deve ser uma das demandas centrais de movimentos políticos trans.
- Isso deve levar em conta agir dentro dos serviços que já existem, construir solidariedade com movimentos de classe trabalhadora e criar projetos específicos para a população trans.
- Nós também precisamos lutar contra a discriminação e por mais entendimento sobre questões trans nas instituições que combatem a pobreza.
- Tanto projetos financiados pelo estado e corporações quanto projetos com recursos próprios tem suas forças e limitações.
c) Justiça
Duas grandes vitórias do ativismo trans em 2020 foram vitórias legais: Taylor vs Jaguar Land Rover, no qual uma pessoa não-binária venceu uma ação por discriminação contra a fabricante de carros e o caso de M x M no Tribunal de Asilo e Imigração no qual uma pessoa não-binária conseguiu asilo no Reino Unido. Os dois casos trouxeram justiça para essas pessoas trans individualmente e conseguiram conquistar mais apoio para a variedade de identidades trans dentro da lei do Reino Unido.
Sem criar uma categoria separada para pessoas não-binárias, os dois casos mostraram que na legislação do Reino Unido, a categoria trans (que na lei de igualdade é uma “característica protegida” de “redesignação de gênero”) não necessita de um modelo único, médico e binário de transição, e que as pessoas trans merecem justiça seja qual for a forma da sua transição.
Há muitos limites para uma abordagem legal da política trans, que historicamente dominou os movimentos trans do Reino Unido. Fazer uso da lei requer muitos recursos financeiros e sociais, e como casos que vão a lei provocam muito desgaste em ativistas individuais e a lei é muito devagar, a abordagem legal muitas vezes só é possível para as pessoas trans mais privilegiadas.
Um dos resultados disso é que os casos na justiça com que nós nos envolvemos e as leis pelas quais lutamos muitas vezes beneficiam principalmente pessoas que têm dinheiro, como é o caso de leis relacionadas a pensão, casamento, etc. Mas as coisas não precisam ser desse jeito.
Quando nós nos envolvemos com casos na justiça e com a luta pela aprovação de certas leis, nós precisamos escolher casos e leis que atendam primeiramente as necessidades das pessoas trans pobres, que não são brancas e que são oprimidas. Nós também precisamos criar organizações lideradas por pessoas trans que possam apoiar financeiramente e emocionalmente as pessoas que estão no centro desses casos.
A organização Sylvia Rivera Law Project nos Estados Unidos, por exemplo, fornece informações legais para pessoas trans diretamente e está envolvida em campanhas contra a prisão e a favor do acesso à saúde e de apoio a pessoas trans em abrigos. No Reino Unido, projetos como o Good Law Project e o Just Law Centre são um começo, mas essas organizações têm um escopo mais restrito, não tem foco em lideranças trans e são inacessíveis para a maior parte das pessoas trans.
Todas as pessoas trans que eu conheço já enfrentaram discriminação no mercado de trabalho, mas eu não conheço ninguém pessoalmente que levou isso para a justiça. Trabalhadores trans são discriminados rotineiramente mesmo com a existência de leis anti-discriminação, especialmente se eles são pobres, se não são brancos ou se são PCD.
Isso também se aplica a pessoas trans acessando serviços públicos. Nós temos a lei, mas não temos recursos para usá-la. Nós precisamos então de centros jurídicos, sindicatos e campanhas lideradas por pessoas trans para apoiar trabalhadores trans nessas lutas com o apoio necessário para se certificar que essas lutas beneficiam todos nós.
Mesmo assim, a lei tem limites. A vitória de um único caso de asilo é tremenda, mas o sistema de asilo no Reino Unido é brutalmente violento, e minorias de gênero precisam com frequência provar que são trans diante de tribunais cis-heterosexistas que tem a pré-disposição a ver a transgeneridade dessas pessoas como falsa.
Casos individuais ajudam indivíduos a lidar com o sistema, mas o próprio sistema tem que acabar. Justice para pessoas trans significa desfazer o sistema de fronteiras do Reino Unido, significa participação de pessoas trans em campanhas de solidariedade com imigrantes e ativismo anti-fronteiras.
Assim como a luta por recursos para pessoas trans deve ser liderada por pessoas trans pobres e de classe trabalhadora, o apoio para imigrantes trans deve ser focado no protagonismo de pessoas trans imigrantes. Muitas vezes, as pessoas trans de classe média querem ajudar e começam um projeto político novo quando aqueles que estão sendo afetados já estão se mobilizando politicamente e precisam de recursos e apoio.
O policiamento e as prisões também são locais de violência extrema contra pessoas trans, mas a solução não é fazer treinamento anti-discriminação para a polícia ou abrir uma prisão não-binária. Não importa quantas sessões de treinamento sejam realizadas, a polícia ainda vai continuar a criminalizar pessoas trans por serem trabalhadoras sexuais, por exemplo, algo que muitas de nós fazemos.
Nas prisões, pessoas trans enfrentam violência, abuso, discriminação, isolamento, falta de acesso a tratamentos de saúde e morte. Poucas dessas coisas podem ser resolvida se certificando de que nós estamos na prisão “certa”, e algumas dessas formas de discriminação podem piorar. Pior ainda, nós temos pessoas trans que estão lutando por leis que contribuem para a criminalização como leis contra crimes de ódio apesar da ampla evidência de que essas leis são usadas contra grupos oprimidos mas não permitem lutar contra a opressão.
Ao invés disso, nós precisamos de pessoas trans participando de movimentos abolicionistas e anti-encarceramento. Ao invés de pedir por prisões não-binárias, nós precisamos nos unir aos movimentos que procuram desencarcerar as mulheres nas prisões, agindo em solidariedade para criar serviços comunitários para mulheres e minorias de gênero e contribuir com o nosso conhecimento sobre como minorias de gênero são afetadas pelo sistema prisional.
Prisioneiros trans já estão liderando essas ações e precisam de recursos e apoio. A mídia quer falar sobre o suposto perigo que pessoas trans representam na prisão; ao invés disso, nós precisamos nos focar nas ameaças que nós enfrentamos, e como isso é parte do abuso sistemático nas prisões contra todas as pessoas.
Além disso, ao invés de estarmos lutando por leis anti-discriminação, deveríamos estar lutando pela descriminalização do trabalho sexual ativamente em nossas ONGs e movimentos sociais. E ao invés de tentar explicar a nossa transgeneridade para a polícia, nós deveríamos lutar por um movimento para substituir o policiamento por serviços comunitários bem financiados.
E também, nós precisamos de recursos de justiça transformadora nos movimentos políticos trans. Opressão e violência ocorrem em nossos próprios grupos sociais, em nossas lutas e nas ONGs também, e isso não vai mudar se a polícia é a nossa única ferramenta para lidar com esse dano. Na minha experiência, a retórica em torno da justiça transformadora é alta, mas os recursos destinados a isso são muito poucos.
Quando a violência e o abuso ocorrem dentro dos nossos movimentos, nós falamos sobre como não queremos envolver a polícia, e nós temos muitas ideias e zines sobre o que fazer. Apesar disso, nós não direcionamos recursos para apoiar as estruturas que podem lidar com esses problemas.
Direcionar recursos para a justiça transformadora significa criar e financiar organizações que podem apoiar processos de justiça e fornecer conhecimento que guie grupos e indivíduos. Mas também significa se certificar de que as organizações de justiça social estão pensando nisso e direcionando tempo e espaço para esse objetivo. Esse vai ser um processo longo, lento e difícil, mas é um processo central para a resiliência de nossos movimentos. Criar um mundo sem polícia e prisões significa transformar a justiça agora.
Resumo
- Mobilizações trans na área legal podem conquistar vitórias importantes, mas geralmente essas vitórias só são conquistadas para pessoas privilegiadas.
- Para a justiça trans beneficiar todos, nós precisamos de projetos de justiça liderados por pessoas trans que forneçam informações sobre a lei e mobilizações para apoiar pessoas trans que não tem recursos.
- A justiça trans significa fazer mobilizações contra a polícia, prisões e fronteiras e por recursos para comunidades.
- Para conseguirmos nos mobilizar bem pela justiça trans, nós precisamos de recursos robustos para nossos próprios movimentos.
d) Libertação
Tudo acima é sobre se distanciar de "direitos trans" e em direção a "libertação trans". Eu sinto pesar quando os slogans dominantes em um protesto trans são "direitos trans são direitos humanos" e "mulheres trans são mulheres". Eu não quero "proteger jovens trans", eu quero armar jovens trans (com as ferramentas para sua libertação)
Esses slogans estão presos na política de reconhecimento, de sermos vistos, administrados e protegidos pelo estado. Eu argumentei que essa abordagem foca nos ricos e continua a violência contra os pobres. Eu sinto que muitas pessoas trans no Reino Unido estão desconectadas da história dos movimentos de libertação como a libertação das mulheres e a libertação gay, onde a libertação trans emergiu inicialmente.
Uma das primeiras organizações políticas trans no Reino Unido foi o grupo "Transsexual, Transvestite and Drag Queen" da Frente de Libertação Gay, e a sua declaração de abertura ainda é libertadora. O "Manifesto Transfeminista" de Emi Koyama foi escrito a 20 anos atrás, e houveram poucos manifestos tão libertadores desde então escritos na anglosfera e no Reino Unido em particular.
Projetos como o Radical Transfeminism Zine (Zine Transfeminismo Radical), que inclui o Edinburgh ATHT's Trans Health Manifesto (Manifesto de Saúde Trans do ATHT de Edimburgo) são poucos e tem muito menos circulações do que, por exemplo, petições para mudar a lei de reconhecimento de gênero. Onde há pensamento liberatório, ele frequentemente está limitado ao meio acadêmico por trás de periódicos com paywall e jargão excludente.
E muitas vezes, o pensamento liberatório está enterrado embaixo da pilha de "debates com TERFs", especialmente na esquerda marxista (que tem seus próprios problemas de jargão). Nós precisamos de um pensamento de libertação novo e focado em pessoas trans circulando por nossos movimentos. Por favor, escreva-o!
Ao invés de "direitos trans", eu quero gritar a demanda "libertação trans agora". Libertação trans é quando nós compreendemos o dano que o policiamento do binário de gênero faz a todas as pessoas, conseguimos os recursos necessários para aqueles que são mais prejudicados por esse policiamento e atacamos os sistemas sociais que mantém o binário de gênero.
Quando pessoas que lutam pela libertação trans examinam criticamente a psiquiatria, por exemplo, nós descobrimos um sistema social que lucra ao patologizar e punir as pessoas que transgridem o binário de gênero em seus desejos e comportamentos.
A libertação trans luta por serviços de saúde autônomos para pessoas trans fora do sistema psiquiátrico, para libertar e apoiar pessoas trans encarceradas por psiquiatras e contra mais financiamento e legitimação de psiquiatria de gênero coercitiva. Esse é o mesmo argumento que eu fiz na primeira secção, apenas em uma linguagem diferente. Todos os meus argumentos acima são argumentos para a libertação trans.
Mas o pensamento liberatório bom não é feito por pessoas trabalhando de forma isolada: ele vêm de participação em movimentos sociais, de grupo de pessoas conversando juntas e procurando trabalhar umas com as outras. Táticas que apoiam isso incluem ajuda-mútua e esforços de conscientização.
A conscientização ocorre quando grupos de pessoas que compartilham uma opressão se juntam para falar sobre seus problemas e apoiar umas as outras, construindo uma compreensão política de onde vem seus problemas. Quando amigos trans falam sobre disforia e apoiam uns aos outros emocionalmente, por exemplo, isso é um começo.
E a partir daí podemos começar uma discussão sobre como padrões de beleza cis-sexistas pioram essa situação. Isso é conscientização. quando nós adicionamos informações e apoio material para ajudar a navegar o sistema de saúde e lidar com a disforia, isso é ajuda mútua.
Ajuda mútua é quando as pessoas se juntam para resolverem seus problemas e atender as necessidades umas das outras. É pessoas trans mandando hormônios umas para as outras, ajudando umas às outras com a roupa, fazendo refeições comunitárias. Projetos de base de ajuda mútua surgiram em grande número durante a pandemia, incluindo alguns grupos trans-centrados. Eu estou envolvida no MATE (Mutual Aid Trans Edinburgh), que começou em março de 2020 quando nós percebemos que muitas pessoas trans e queer não estavam usando grupos de ajuda-mútua locais por causa da transfobia ou porque elas têm necessidades que esses grupos não conseguem atender.
Ajuda-mútua é sempre política, e deve se esforçar para que seus participantes se engajem em movimentos sociais. O MATE, por exemplo, apoiou os protestos do Black Lives Matter em Edimburgo participando pessoalmente, providenciando apoio, ajudando com a distribuição de máscara e com o apoio de pessoas em isolamento depois do protesto. Eu sei que fazer parte desse tipo de ação fortaleceu meu pensamento liberatório, e me mantém menos focada em buscar por reconhecimento por parte do estado, menos focada em discutir com TERFs e mais focada em atender as necessidades de pessoas trans diretamente.
A libertação das pessoas trans é também a das pessoas cis, porque o policiamento do binário de gênero fere a todos nós. Pessoas trans, especialmente as mulheres trans, são vítimas do cissexismo, mas isso não significa que pessoas cis não podem se envolver na nossa libertação.
Eu estou um pouco cansada de ver pessoas cis achando que elas não podem ser ativas na nossa libertação, sempre deixando o trabalho nas mãos das pessoas trans que elas podem "apoiar". Isso termina tomando a forma de pessoas cis retweetando petições e doando para vaquinhas mas não sendo ativas nas diferentes mobilizações que eu mencionei no artigo. Então, para as pessoas cis lendo isso: por favor, se envolvam ativamente! Sim, a liderança trans é essencial, mas eu quero cúmplices!
No fim das contas, a libertação trans não é possível sem a libertação das pessoas negras, a descolonização, a libertação das mulheres, das pessoas com deficiência, da luta de classes e outras coisas. Isso não é apenas porque pessoas trans também são negras, colonizadas, mulheres, deficientes e trabalhadoras, mas porque os sistemas que oprimem as pessoas trans são também os sistemas da supremacia branca, imperialismo, cis-heteropatriarcado, o capacitismo e o capitalismo.
Tudo está conectado. Uma pessoa trans em situação de pobreza, por exemplo, tem muito mais chance de ser criminalizada - talvez porque roubou comida para sobreviver, talvez porque está realizando trabalho sexual, talvez porque se medica com drogas recreativas e o uso de drogas por pessoas pobres é criminalizado.
No contato com a polícia ela pode ter uma crise de saúde mental que pode ser interpretada pela polícia como perigosa por ela ser negra, levando ao seu encarceramento dentro do sistema psiquiátrico. Ela pode ficar presa lá, porque o apoio a pessoas com questões de saúde mental sofreu cortes devido a políticas de austeridade. Lá, ela pode ter a sua terapia hormonal negada e entrar em abstinência, e ser também excluída dos serviços médicos apropriados ao seu corpo porque a sua apresentação de gênero não é cis. Tudo isso já aconteceu com amigos meus.
É por isso que nesse artigo eu falei bastante da participação trans em outros movimentos. Um movimento por "direitos trans" separa as pessoas trans de outras lutas e luta por pequenos avanços que só beneficiam algumas pessoas trans, mas um movimento de libertação trans é conectado com todas as outras lutas por libertação e trabalha para a libertação de todos nós juntos.
Isso não significa que não há demandas específicas de pessoas trans pela qual nós devemos lutar ou necessidades relacionadas a ajuda mútua especificamente trans, mas significa que muitos dos nossos problemas só podem ser resolvidos com a participação trans em movimentos de libertação mais amplos.
Quando movimentos trans são isolados, nós podemos às vezes terminar lutando contra os interesses da libertação, como no caso da legislação de crimes de ódio que eu citei acima ou quando os movimentos de direitos trans são separados da luta antimanicomial. Mas quando nós lutamos pela libertação de todos, todos podem lutar pela nossa libertação também.
Resumo
- "Direitos trans" separa pessoas trans de outras lutas e consegue vitórias para as pessoas ricas, mas a "libertação trans" desafia todos os sistemas que oprimem pessoas trans e constrói solidariedade.
- Muitos movimentos trans no Reino Unido negligenciaram a libertação trans: nós precisamos de mais pensamento liberatório e trabalho liberatório.
- Conscientização e ajuda-mútua são ferramentas para a nossa libertação.
- A libertação trans é parte da libertação negra, decolonização, libertação das mulheres, dos deficientes e da luta de classes.
Parte 2: Como vencer
a) Quem é a oposição?
A transfobia organizada tem se tornado mainstream com sucesso na política do Reino Unido. Isso é uma situação séria que faz com que seja muito mais difícil conseguirmos vitórias, e que também continua trazendo ameaças novas para as vidas trans contra as quais nós temos que nos defender.
Por um lado, eu acho que grande parte da política trans no Reino Unido tem sido fixada demais em "combater a transfobia" (e de forma ainda mais redutiva, em "combater TERFs"). Por outro lado, para vencer, nós precisamos entender quais são as forças que estão contra nós, qual é o poder que elas têm, como elas conseguiram e como nós fracassamos ao tentar impedi-las. Essa próxima secção é então uma breve análise de quem lutou contra a libertação trans e como obtiveram poder.
No governo, hoje em dia, a ministra de igualdades Liz Truss frequentemente instiga medo com argumentos transfóbicos e racistas, e elaliderou a decisão de vetar até a menor das reformas na lei de reconhecimento de gênero. Na Escócia, a transfobia organizada é uma parte importante de um setor significativo do movimento por independência, um setor que conquistou com sucesso muitas das posições do Comitê Nacional Executivo do partido do governo, o SNP; reformas na lei de reconhecimento de gênero foram interrompidas de forma indefinida.
Os apitos de cachorro transfóbicos são agora incluídos em manifestos de partidos, incluindo o do Partido Trabalhista. Embora a discriminação de gênero ativa não seja prioridade para nenhum partido ou uma política explícita, é agora muito difícil para pessoas trans fazerem qualquer progresso pelo sistema político, e nós geralmente aparecemos como um bode expiatório retórico.
Há também um movimento anti-trans feito por uma rede de grupos pequenos de ativistas falsos. A maioria deles é administrado pelos mesmos poucos indivíduos, e alguns existem primariamente ou apenas como sites e contas de twitter. Apesar disso, esses grupos conseguem centenas de milhares de libras em vaquinhas para colocarem obstáculos para direitos trans no sistema de justiça, o que inclui políticas de saúde, de emprego, leis anti-discriminação e relacionadas a crimes de ódio, estatutos de igualdade e por aí vai.
Apesar das vitórias desses grupos serem poucas e derrotas regulares, eles conseguiram intimidar autoridades locais e fazer com que elas retirem orientações sobre como apoiar estudantes trans, e fizeram com que o Crow prosecution Service (uma entidade que lida com questões legais) retirasse orientações sobre legislação contra crimes de ódio; conseguiram atrasar e impedir reformas na lei de reconhecimento de gênero e, pior ainda, conseguiram parar ou dificultar imensamente qualquer serviço de saúde para pessoas trans com menos de 18 anos na Inglaterra e no país de Gales.
O seu objetivo a longo prazo é claro para qualquer um que os estude: reduzir drasticamente todos os serviços de saúde trans; separar o status de pessoas trans entre aquelas sem um certificado de reconhecimento de gênero e aquelas com o certificado, e assim dificultar o acesso de pessoas trans a serviços e a posições para o seu gênero; e no final das contas, reformar ou remover a lei de reconhecimento de gênero e impedir que as pessoas trans vivam seguramente como elas mesmas.
Conseguindo ou não cumprir seus objetivos, o trabalho desses grupos é um ataque contra as vidas trans feito através de agitação e alarmismo, encorajando discriminação contra pessoas trans, impedindo a libertação e trans e colocando as pessoas trans em um estado constante de estresse político.
A ação anti-trans é apoiada por transfobia implacável na mídia. Isso inclui jornalistas transfóbicos como Andrew Gilligan do Sunday Times (agora trabalhando como conselheiro de transporte para Boris Johnson), que foi responsável por uma série de conteúdos gerando alarmismo, apresentando uma cobertura distorcida e atacando pessoalmente mulheres trans.
Também inclui políticas editoriais em veículos de comunicação como a BBC, onde em nome da "imparcialidade" vozes transfóbicas são incluídas constantemente nas abordagens sobre pessoas trans. Além disso, uma série de colunistas ativos e estáveis escrevem artigos de opinião em todos os grandes veículos da mídia e popularizam pontos de vista transfóbicos de certos grupos. Enquanto isso, existem muitos poucos jornalistas trans trabalhando em veículos de mídia no Reino Unido, e menos ainda cobrindo assuntos trans. Até onde eu sei, não há nenhum colunista trans trabalhando em um dos grandes jornais.
Eu acredito que é um grande erro descrever todas essas forças políticas de movimentos e na mídia como "TERFs". O Feminismo radical trans-excludente é uma vertente específica e minoritária no feminismo que se originou em uma oposição minoritária a mulheres trans em movimentos feministas e lésbicos. Poucos dos políticos, colunistas ou organizadores de movimentos sociais tem conexões com o feminismo radical trans-exludente: eles não são feministas lésbicas, não tem um histórico nesse movimento e nem sequer são organizadores feministas para além da oposição a direitos trans.
O que aconteceu de fato é que uma coleção de conservadores sociais padrão, nacionalistas reacionários e centristas isentões que adotaram uma série de argumentos de TERFs e estão usando esses argumentos para justificar sua própria política.
È por isso que você pode ver a mesma linguagem usada por organizadoras para expulsar mulheres trans de um festival de música (contra a opinião da maioria das feministas) sendo usada agora para falar sobre banheiros. Assim, quando nós procuramos lutar contra a transfobia organizada como feministas como se isso fosse uma conversa feminista entre irmãs, nós estamos mirando no alvo errado.
Argumentar contra TERFs é perda de tempo para a libertação trans porque não são elas que mandam. As poucas TERFs que estão de fato no movimento anti-trans são peões úteis para a liderança, e para nós elas são uma distração. O que nós precisamos agora é nos organizar contra as diferentes formas de conservadorismo social que estão chegando ao poder e levando e se desenvolvendo em fascismo. Quando eu analiso o poder ant-trans e como ele chegou ali, não é para você debater pessoas no twitter: é para nós descobrirmos onde nós precisamos construir um poder alternativo para a libertação trans.
Resumo:
- A transfobia se tornou mainstream no Reino Unido, e isso é um obstáculo para a libertação trans.
- Mobilizações anti-trans obtém poder através da política partidária, seus próprios movimentos sociais e a mídia.
- Nós devemos pensar na política anti-trans como primariamente conservadora: ela usa retórica feminista mas tem apenas raízes fracas no feminismo.
b) Como nós chegamos aqui?
Descobrir quais são as estratégias que devemos usar para a libertação trans significa analisar os limites das estratégias pensadas até agora. Se a transfobia se tornou mainstream, nós temos que entender como ela chegou até esse ponto. Essa é minha breve análise dos últimos cinco anos. Não vou oferecer um relato exaustivo: ao invés disso, estou usando essa análise como uma forma de conversar sobre como os movimentos trans podem reagir melhor.
i) Movimentos sociais anti-trans
Consultas para reformar a lei de reconhecimento de gênero foram anunciadas na Inglaterra e no País de Gales em 2016; as duas seguiram em 2018, com a da Escócia ocorrendo 6 meses antes. Grupos como o Women's Place UK foram fundados ao mesmo tempo especificamente para se opor a essas reformas. Esses grupos começaram a realizar eventos pelo Reino Unido para recrutar mais membros e construir um movimento social. Os primeiros encontros e grupos tiveram raízes na vertente minoritária TERF do feminismo lésbico, e esse é o ponto em que essa filosofia começou a tomar impulso e se afastar de suas raízes.
Encontros públicos realizados por esses grupos entre 2017 e 2019 geraram quase sempre protestos em solidariedade às pessoas trans em resposta. Esses protestos foram organizados por grupos de estudantes e grupos com raízes em mobilizações antifascistas. O objetivo era mostrar solidariedade às pessoas trans e atrapalhar as mobilizações transfóbicas.
Olhando agora em retrospectiva, essas táticas fracassaram na maior parte. Grupos transfóbicos recrutaram com sucesso, expandiram seus interesses, tornaram seus argumentos mainstream e conseguiram muitos aliados políticos. No melhor dos casos, os resultados dessa onda de protestos de solidariedade é que a transfobia se tornou ostracizada em alguns setores da sociedade, certos indivíduos se tornaram párias nesses grupos sociais e algumas instituições públicas declaram apoio às pessoas trans com frequência.
Mas mobilizações transfóbicas encontraram muitos outros espaços e meios de apoio, incluindo estruturas sociais paralelas. Enquanto isso, o apoio a pessoas trans declarado por trabalhadores de instituições públicas raramente se reflete na liderança dessas instituições ou é acompanhado de ações concretas.
Por que os protestos de solidariedade trans não cumpriram seus objetivos? Primeiramente, nós superestimamos o apoio que nós receberíamos de outros movimentos e a força de nossos laços com esses movimentos, então os protestos anti-transfobia foram isolados. Se as pessoas trans não estão consistentemente envolvidas em outras lutas, é difícil mobilizar a sua solidariedade.
Isso é conectado a uma segunda razão: a esquerda de maneira geral não foi capaz de demonstrar solidariedade ativa nesse estágio inicial. Jornais como o Morning Star e algumas pessoas de sindicatos e partidos lutaram para sabotar protestos de solidariedade trans.
Além do mais, organizadores transfóbicos foram muito bem sucedidos em se aproveitar de uma disputa cultural crescente em cima da noção de liberdade de expressão. Eles se colocaram como vítimas silenciadas, uma tática que fortaleceu suas mobilizações.
E essas organizações transfóbicas iniciais rapidamente encontraram poderosos aliados nos movimentos sociais da extrema direita, financiamento de evangélicos estadunidenses, influenciadores conservadores e facções partidárias, obtendo assim apoio que superou as mobilizações de solidariedade às pessoas trans.
Eu não estou culpando os organizadores desses protestos ou as pessoas trans (para esclarecer o meu envolvimento, eu apoiei vários desses protestos como uma observadora legal). Seria equivocado dizer que minorias não deveriam protestar contra aqueles que se organizam contra a sua libertação. Mas nós precisamos avaliar o que deu errado.
ii) Mídia anti-trans
Se aproveitando dessa primeira onda de organização transfóbica, as organizações anti-trans obtiveram mais poder através da cobertura da mídia e de partidos políticos. Além de encontros, isso foi coordenado por meios online simpatizantes ou não-moderados como o Mumsnet, r/GenderCritical e o Twitter, assim como por grupos sociais privados e grupos de whatsapp.
A partir do anúncio das consultas da reforma da lei de reconhecimento de gênero, um aumento dramático de cobertura de mídia e falas de formadores de opinião fortaleceram argumentos transfóbicos e atacaram ativistas trans.
As táticas de jornalistas anti-trans incluíram isolar e constranger ativistas individuais, dar visibilidade a organizadores transfóbicos, espalhar desinformação sobre legislações de igualdade e políticas na área de saúde, atacar fornecedores de serviço de saúde, usando vaquinhas e casos na justiça como gancho para reportagem, usando posts de blogs para-academicos para conseguir cobertura por meios acadêmicos e de mídia e usar todo ato de oposição para lançar um artigo em colunas de opinião afirmando que estão sendo silenciados e conseguindo o apoio de celebridades que também se transformaram em histórias na mídia.
As principais táticas de solidariedade tans em resposta a tudo isso tem sido defensivas: escrevendo artigos desmascarando a desinformação e tentar publicar em algum meio de comunicação, aparecendo na televisão para debater transfóbicos, organizando canais de mídia paralelos para rebater argumentos anti-trans, solicitando cartas abertas para responder a esses ataques e outras táticas nesse sentido.
De maneira geral, nós nos engajamos justamente no debate público que os organizadores transfóbicos queriam, e o poder social deles cresceu mais rápido que o nosso. (Novamente, eu também participei disso tudo, como você pode ver pelos meus artigos no Medium).
Ficar sempre respondendo à transfobia significa que nós não falamos de forma positiva sobre as vidas trans ou avançamos a nossa compreensão das lutas que enfrentamos. Quando você está desmontando um argumento transfóbico, você não está criando mais conhecimento sobre a saúde trans; quando você está tweetando contra um transfóbico, você não está falando com seus amigos. Se a mídia é útil para algo, é para criar uma compreensão pública de como as vidas trans são de fato.
Mas a mídia faz parte do sistema social opressor que está no caminho da nossa libertação. Isso significa que nós precisamos de uma mídia e cultura trans independente, mas nós fizemos muito pouco. A cobertura que nos apoia vem de alguns pequenos enclaves na mídia LGBT e de esquerda como o PinkNews ou o New Socialist, e depende de alguns poucos jornalistas.
No Reino Unido, nós não temos meios de inclusão mainstream e pop como o them.us, que podem dar apoio a artistas e ativistas trans. Não há revistas online ou impressas feitas por pessoas trans com uma boa circulação, muito menos com uma análise radical. Nós temos uma série de contas de Twitter, sites e podcasts, a maioria dos quais passa mais tempo respondendo argumentos transfóbicos do que promovendo a vida e a cultura trans.
Nós temos poucos recursos, e se nós estamos sempre defendendo e nunca construindo, se nós vamos sempre entrar no território hostil da mídia mainstream e nunca construir os nossos próprios espaços, nós nunca vamos ter mais recursos. Nós também estaremos muito mais miseráveis.
Assim como no caso dos protestos, o objetivo não é culpar pessoas trans pelo crescimento da transfobia e nem para dizer que nós não devemos responder de alguma forma ou que desmentir os argumentos transfóbicos não é necessário. O que eu quero dizer é que focar apenas nesse tipo de trabalho negligencia a vida trans e não ajuda a construir o poder trans. Se essa estratégia não tem funcionado, precisamos tentar algo diferente.
iii) Políticos anti-trans
Finalmente, eu quero analisar o papel de partidos políticos em popularizar a transfobia. Essa atuação foi particularmente bem sucedida na Escócia, onde uma parte significativa do SNP é agora obsessivamente contra a libertação trans e está conquistando posições de poder no partido. Ao invés de analisar a política partidária do Reino Unido, isso é um estudo de caso da Escócia.
A transfobia surgiu de forma clara no movimento de independência escocês primeiramente através do blog autônomo Wings Over Scotland, que tem uma obsessão desde anos atrás em desqualificar a vida e cultura trans (e de defender abusadores domésticos). Ao mesmo tempo que grupos transfóbicos foram fundados na Escócia, o For Women Scotland (grupo anti-trans com discurso pseudo-feminista) também iniciou suas atividades lá.
Em 2018, a conexão entre a transfobia e a independência escocesa emergiu na política partidária quando a parlamentar escocesa do partido SNP Joan McAlpine convidou o For Women Scotland para contribuir com evidência para uma nova lei sobre o censo escocês, que estava prestes a incluir dados melhorados sobre pessoas trans.
Mcalpine procurou direcionar os provedores de evidência contra pessoas trans e o comitê em direção a conclusões trans-excludentes em uma atuação que antecipou os ataques às reformas na lei de identidades de gênero. Essas ações obtiveram cada vez mais cobertura pela mídia através de jornalistas simpatizantes em revistas e jornais escoceses, assim como através de outros aliados no SNP e outros partidos.
O apoio à organizadores misóginas como o Wings por parte de figuras relacionadas a independência como Robin Mcalpine (nenhuma relação com Joan) do Common Weal e o silêncio em relação a libertação trans por parte de grupos como o (já dissolvido por tensões internas) Radical Independence Campaign) permitiram que a popularização da transfobia seguisse firme.
Assim como os protestos contra reuniões de grupos transfóbicos, a oposição à tendência transfóbica no SNP foi consistentemente caracterizada como uma ameaça à liberdade de expressão, e o discurso público chegou ao ápice quando a participante do parlamento escocês Joanna Cherry mostrou um meme impresso no parlamento de Westminster.
A partir do fim de 2019 e especialmente através de Cherry e Wings, a tendência anti-trans passou a ser claramente associada com a facção dentro do SNP e o movimento de independência em oposição a liderança atual que tem demandado maior militância e velocidade na agitação pela independência e no apoio ao ex-líder Alex Salmond em seu julgamento por assédio sexual.
A facção conquistou influência suficiente para que o SNP enfraquecesse e depois atrasasse reformas na lei de identidade de gênero em oposição tanto ao seu próprio manifesto quanto à maioria dos participantes da consulta realizada pelo partido. Por volta de 2020, a situação se transformou em uma guerra aberta de facções na qual pessoas trans — e “proteger os direitos das mulheres” — foram apenas uma questão em uma disputa mais ampla.
Em novembro de 2020, um grande número de candidatos associados com essa facção, muitos dos quais atuam abertamente e ativamente contra as vidas trans, obtiveram a maioria das posições do Comitê Nacional Executivo, embora eles não tenham conseguido fazer o mesmo na seleção de candidatos para o parlamento escocês.
Por volta dessa época, uma reforma em uma lei relacionada a exames médicos forenses liderada por Johann Lamont, membro do parlamento escocês do Partido Trabalhista, realizou uma mudança legalmente irrelevante e cosmética ao trocar o termo “gênero” por “sexo”. Como resultado disso, o Rape Crisis Scotland (centro de acolhimento de vítimas de abuso sexual) foi assediado até terminar excluíndo suas redes sociais por criticar o debate público em torno da lei, e o membro do parlamento escocês Andy Wightman saiu do Partido Verde por causa de seu apoio por direitos trans.
Afirmações e propostas abertamente anti-trans são agora uma característica regular do Parlamento Escocês em todos os partidos. Nenhuma medida para melhorar vidas trans avança sem uma oposição vocal; qualquer medida para melhorar a vida das mulheres se torna uma oportunidade para atacar pessoas trans. Para ilustrar como as coisas se tornaram absurdas, em 2021 o For Women Scotland foi à justiça para procurar reverter uma lei de 2018 que institui a igualdade de gênero na direção das escolas que incluiu mulheres trans em sua definição de mulheres.
O seu argumento principal era que o parlamento escocês não tem o poder para legislar nessa área. Ou seja, um grupo supostamente feminista se opôs a uma medida de igualdade de gênero e foi apoiado por uma série de ativistas pela independência apesar de buscar limitar os poderes do parlamento escocês.
Esse estudo de caso sugere como a transfobia se populariza em e através de partidos políticos. Primeiro, organizadores individuais e grupos menores constroem argumentos e sua própria cultura, depois encontram apoiadores dedicados dentro de um partido.
Esses apoiadores utilizam seu poder e recursos para recrutar mais aliados, e começam a se engajar em conflitos entre diferentes setores. Nesse momento, um setor passa a usar pessoas trans como uma minoria facilmente atacável. Pessoas trans se tornam uma ameaça de fora contra quem o poder pode ser articulado, então organizadores transfóbicos conquistam mais poder uns através dos outros.
Enquanto isso, uma falta de ações contra a transfobia vinda de lideranças do partido permitem que essa facção cresça, e ativistas trans não recrutam aliados ou adquirem poder para se igualar ou superar as facções transfóbicas. Na Escócia, essa situação piorou devido ao fracasso da mídia pró-trans de abordar devidamente o que ocorreu e dos aliados de maneira geral no Reino Unido de oferecer algum tipo de apoio. Dinâmicas parecidas estão operando no Partido Trabalhista através de figuras como Rosie Duffield e o fracasso de Keir Starmer ao não assinar a Declaração de Direitos Trans, e também no Partido Conservador através de figuras como David TC Davies e Jacky Doyle-Price.
Eu estou dividida sobre como reagir a essa ameaça. Eu tenho andado bem desapontada com minhas próprias tentativas de me engajar com a política partidária, e como uma liberacionista, eu tenho mais interesse em construir poder social independente. Assim como em relação à mídia, eu sou cautelosa em relação a engajar políticos transfóbicos em seus próprios termos ao invés de definir a nossa própria agenda política.
Por outro lado, partidos políticos são um grande vetor de poder e ignorá-los apenas me parece arriscado. Atuar dentro de partidos para construirmos obtermos poder contra as facções anti-trans, assim como a Campanha do Partido Trabalhista por Direitos Trans e Fora pela Independência estão fazendo estão fazendo, é provavelmente necessário, e isso envolve encontrar aliados e pessoas dispostas a nos representar.
Mas se as pessoas trans não têm o seu próprio poder social e não estão criando raízes fortes em movimentos sociais mais amplos, elas não terão poder para desafiar partidos políticos. Sem poder trans, é muito fácil para partidos ignorar direitos trans quando há controvérsias. Com isso em mente e com um suspiro aliviado, eu vou deixar os transfóbicos para trás e prosseguir ao poder trans.
Resumo
- Grupos que se mobilizam por pautas anti-trans conseguiram recrutar com sucesso nos últimos cinco anos, e protestos de solidariedade trans não foram o suficiente para impedir a sua expansão.
- Nós precisamos de raízes mais fortes em movimentos sociais mais amplos para desenvolver solidariedade trans.
- Jornalistas anti-trans mantém uma investida constante de cobertura negativa de mídia e as pessoas trans frequentemente estão presas em ciclos de defesa e resposta.
- Nós precisamos lutar por uma cobertura melhor das vidas trans e das questões que nós enfrentamos e desenvolver uma mídia independente.
- Políticos anti-trans desenvolvem poder através de conflito entre facções e alianças com a mídia e movimentos, e é preciso desenvolver uma solidariedade trans em partidos para limitar o estrago causado por eles.
Quais são as forças que a libertação trans tem?
Nós temos muitas pessoas. Eu não conversei com nenhuma pessoa trans que transicionou há mais de dez anos atrás que não está surpresa, e muitas vezes encantada, com o número de pessoas trans que estão se percebendo e vivendo o seu gênero alegremente. É muito difícil que essas pessoas voltem ao armário, a não ser no caso de uma tomada de poder fascista (o que é possível). Nós temos uma nova geração de pessoas trans vivendo abertamente em uma proporção que nunca tivemos antes, demandando mais do que pessoas trans conseguiram anteriormente. Isso é uma conquista incrível que veio por décadas de luta.
Essa conquista foi um dos fatores que contribuiu para a crise de saúde e retaliação social, e embora seja cômodo deixar essa conquista mascarar as desigualdades e diversidade entre as pessoas trans, a conquista está aí. A vida trans no Reino Unido é mais aberta e possível do que era uma década atrás, e nós precisamos torná-la ainda mais possível.
Nós temos uma cultura trans rica e diversa. Nós temos livros, música, filmes, teatro e mais, e nós estamos fazendo cultura uns para os outros, publicando conteúdo uns dos outros, apoiando e uns aos outros. Quando eu olho para a nossa oposição e a miséria de sua produção cultural, eu me recordo como nós somos poderosos e como isso é irresistível.
Como alguém que trabalha no setor cultural, eu acho que nós temos um apoio decente para fazer essa cultura, especialmente a partir da base da força de trabalho. Isso vale menos para as partes administrativas, que têm mais chances de serem mais amigáveis com seus colegas da classe dominante e criar problemas para pessoas trans que trabalham na área cultural.
A visibilidade pública de pessoas trans também atrapalha trabalhos que avançam a cultura trans: com muita frequência nós somos pagos para contar histórias para pessoas cis, histórias que explicam o básico sobre nossas vidas ao invés de de falar da riqueza das vidas trans.
Às vezes, os poucos de nós que temos alguma segurança na indústria cultural e com apenas um pouco de presença nas instituições estamos altamente isolados e carregamos um fardo de representação difícil de administrar. Isso é especialmente verdadeiro para mulheres trans, pessoas trans não-brancas e pessoas trans com alguma deficiência. Nós precisamos de nossos próprios sistemas de apoio econômico para tornar nossa cultura ainda mais forte e mais vibrante.
Nós temos uma legislação antidiscriminação decente. A Lei de Igualdade nos protege da discriminação com base em redesignação de gênero. A definição inclui fatores sociais junto com fatores médicos como “redesignação de gênero”, e se aplica a qualquer estágio da transição. Pessoas que conseguem um Certificado de Reconhecimento de Gênero são reconhecidas pela lei como o seu gênero “em todos os sentidos”.
Nós vencemos a maior parte dos processos legais por discriminação: em banheiros (Brook vs Tasker), no trabalho (Taylor vs Jaguar Land Rover), em vestiários (nenhum caso ainda foi a justiça, as empresas têm cedido antes). Há várias vulnerabilidades que ativistas anti-trans procuram atacar: a proteção é menos definitiva para quem não tem um Certificado de Reconhecimento de Gênero, para pessoas trans no início de sua transição e para pessoas trans marginalizadas (veja o caso R vs Green para uma combinação desses fatores).
O maior problema é que nos falta recursos políticos, sociais e econômicos para nos aproveitarmos da lei. Todas as pessoas trans que eu conheço tem um histórico de discriminação pessoal e direta, mas eu não conheço ninguém pessoalmente que recorreu a justiça. Nós precisamos de centros de justiça radicais para pessoas trans e movimentos que possam nos apoiar usando e expandindo as leis existentes.
Nós temos algum poder no setor das ONGs e um apoio decente entre as ONGs feministas, especialmente de suas bases e sindicatos. Isso inclui financiamento para ONGs especificamente trans, apoio de ONGs maiores como a Anistia e uma chance de uma vida decente para quem trabalha nesses setores. ONGs que adotam uma postura abertamente trans-excludente e lutam por isso são relativamente poucas e com fontes de financiamento mais fracas. Nós precisamos desenvolver mais esse apoio, e precisamos especialmente construir alianças mais profundas e significativas com o setor feminista, assim como serviços.
Temos também alguma força no setor acadêmico, especialmente (mas não de forma universal ou garantida) nas áreas de estudos culturais, sociologia e saúde, onde é possível realizar trabalho liderado por e centrado em pessoas trans. Trabalhos trans-excludentes ainda são uma minoria nesses campos e mais difíceis de realizar. Em outros campos como direito e filosofia, a situação está mais precária.
Isso cria oportunidades de vida e expande o conhecimento sobre vidas trans. Apesar disso, não devemos superestimar os nossos recursos aqui. Muitas pessoas trans que entram no setor acadêmico terminam saindo como resultado da transfobia e da neoliberalização do meio acadêmico. Nós precisamos tornar o conhecimento trans mais amplo, diverso e acessível.
Nós temos bastante influência nos movimentos jovens de esquerda. Isso é especialmente evidente fora dos sindicatos e dos partidos políticos, embora haja apoio por lá também. Nas mobilizações políticas, há pelo menos um entendimento superficial de questões trans, um desejo de apoiar pessoas trans e uma noção de que a libertação trans está ligada a outras lutas por libertação.
A esquerda está fraca agora no Reino Unido e precisando de reorganizar após a derrota de Corbyn, mas lutas lideradas por pessoas negras e um aumento na militância dos sindicatos durante a pandemia são sinais promissores, e pessoas trans têm feito parte desses movimentos. Nós precisamos aprofundar nossas raízes e nos aproveitarmos de nossas forças.
Nós temos também um movimento de ajuda mútua emergindo. Nos primeiros meses da pandemia do coronavírus houve um aumento de mobilizações de ajuda mútua, e isso inclui grupos trans de ajuda mútua. Grupos de ajuda mútua trans oferecem apoio a comunidades liderado por pessoas trans, serviços de saúde apoio em mobilizações e projetos para combater a pobreza e para apoiar pessoas trans. Organizações desse tipo nesse momento são poucas e precárias, mas são um sinal bem vindo de um movimento emergente que precisa crescer.
Tendo apontado alguns de seus pontos fortes, eu gostaria de fazer algumas observações sobre o porquê da libertação trans estar em falta no Reino Unido e o que eu quero construir. Nos faltam organizações diversas, vocais e resilientes de libertação trans com o foco em uma política emancipatória ao invés de uma política de direitos, representação e inclusão.
Nós estamos apenas começando a construir alianças trans ativas em partidos de esquerda e sindicatos. Nos falta uma mídia forte e autônoma, seja moderada ou radical. Precisamos de centros sociais trans e LGBT+, especialmente espaços autônomos e independentes independentes de ONGs e empresas: Londres e Belfast são dois exemplos.
Nos faltam projetos de saúde independentes liderados por pessoas trans para além do trabalho pioneiro do QueerCare e a Black Trans Foundation: nossas opções para cuidado para além do sistema quebrado das Clínicas de Identidade de Gênero com seus problemas são práticas privadas que nos exploram e redes precárias de faça-você-mesmo. Faltam também mais iniciativas legais lideradas por pessoas trans: O Good Law Project e o Just Law Centre são duas das poucas iniciativas legais por direitos trans, e até onde eu sei não são lideradas por pessoas trans (e no fim das contas, nós temos poucos advogados).
Além desses recursos, eu acho que o nosso trabalho até agora não conseguiu desenvolver algumas áreas importantes do conhecimento e prática política. Nos falta, eu acho, uma cultura transfeminista ampla e radical que possa crescer e alimentar as pessoas e comunidades que nós vamos precisar. Nós temos fortes sementes e ótimos pensadores, mas a maior parte das pessoas trans não sabe o que é o transfeminismo radical, e isso me entristece.
Entre as organizações que existem falta solidariedade internacional, o que significaria colaboração entre diferentes movimentos trans, especialmente para além da anglosfera. Em um momento que ativistas anti-trans britânicos estão fomentando movimentos internacionalmente, nós precisamos compartilhar conhecimento e recursos.
Isso significa apoiar ativamente as diversas expressões de diversidade de gênero internacionalmente para além de simplesmente citar elas como evidência de uma identidade trans universal. Vivendo em um centro imperial, nós precisamos contribuir com os movimentos internacionais com solidariedade e recursos, e não cooptar lutas para fortalecer as nossas próprias.
Finalmente, nós precisamos lidar com a dominância da branquitude dentro de nossas organizações políticas, a marginalização de mulheres trans e pessoas transfemininas em nossas ONGs, cultura e academia e a exclusão de pessoas com deficiência e de classe trabalhadora de alguns centros de vida trans. No fim das contas, a libertação trans precisa reconhecer e lidar com as desigualdade e opressões dentro da própria categoria “trans”.
Resumo
- Nós temos muitas pessoas empoderadas e nós temos uma cultura forte, somos fortes na esquerda jovem, nas ONGs e em alguns setores da academia.
- Nós temos um movimento emergente mas frágil e que necessita de recursos, e há uma compreensão fraca do que significa a libertação trans no geral.
- Lutar pela libertação trans significa uma melhor solidariedade internacional e lidar com a opressão dentro de movimentos trans.
Que estratégias nossos movimentos devem usar?
Eu argumentei ao longo desse artigo que nós investimos muito em ONGs e pouco em organizações autônomas, muito em representação e pouco em vitórias materiais. Eu também argumentei que nós lutamos demais no terreno escolhido por nossos inimigos, e muitas vezes de forma defensiva, e que ao invés disso nós precisamos escolher o nosso próprio terreno para lutar. Eu acho que nós precisamos lutar primeiramente não contra aquilo que nós tememos, mas por aquilo que queremos. Aqui estão algumas ideias sobre como fazer isso baseadas em minha experiência com movimentos sociais.
Primeiramente, comece um grupo local. Ao invés de tentar construir uma organização nacional e conseguir financiamento para ela, busque por uma forma de encontrar cúmplices trans na sua área local. Ao invés de criar uma conta no twitter com um bom acrônimo, procure conhecer quem está a sua volta e quais são as suas lutas e desejos.
Juntos, procurem por projetos locais que precisam de ação e causas que precisam de luta. A sua autoridade local removeu orientações para apoiar estudantes trans por causa de um ataque transfóbico? Procurem por uma forma de apoiar jovens trans na sua área emocionalmente e em um sentido prático e trabalhem juntos para pressionar a autoridade local a lançar novas e melhores orientações.
A clínica de identidade de gênero da sua região não tratou nenhum paciente no último ano? Procurem por uma forma de construir uma rede de cuidados de saúde trans local que ajude pessoas a conseguirem serviços de forma independente e que pressionem a clínica para que ela seja drasticamente reformada ou libere seus recursos para projetos liderados por pessoas trans.
Tem um projeto de solidariedade com imigrantes na sua região? Aprenda sobre como eles estão apoiando imigrantes LGBT+ através de sua atuação e como vocês podem participar, e se juntem a campanhas de ação direta pelo fechamento dos centros de detenção e campos de prisioneiros. Existe alguém na sua cidade promovendo a cultura trans e fazendo trabalhos de educação? Encontre uma forma de apoiar, expandir e promover a educação radical política como parte do que está acontecendo. Entre em contato com grupos de apoio a prisioneiros localmente e escreva para prisioneiros trans.
A partir dessa base, conecte-se com outras campanhas locais e forme uma rede de grupos. Procure saber no que os outros estão atuando e onde você pode oferecer apoio e recursos. Às vezes, você pode ter conquistado uma vitória parecida com a que outros procuram e pode ensiná-los como; às vezes eles já vão ter produzido o zine de cuidados de saúde faça-você-mesmo que você está pensando em escrever.
Com uma rede forte, você terá recursos e laços de confiança muito mais fortes aos quais recorrer quando surgir uma campanha nacional — como libertar uma pessoa trans encarcerada ou financiar um serviço de saúde sexual trans. Um movimento organizado de cima para baixo tende a ter conexões fracas, recursos mais precários e é capaz apenas de conquistar algumas reformas através de representantes escolhidos. Um movimento organizado a partir de baixo tende a ser mais poderoso e resiliente e a conquistar vitórias mais significativas.
Quanto estamos pensando em táticas para essas lutas, nós precisamos de muito mais do que petições e protestos ordenados e educados como nossas ferramentas básicas de luta. Nós precisamos de protestos militantes e incontroláveis e grupos pequenos e preparados de ação direta. Nós precisamos interromper reuniões de conselhos de saúde e demandar por recursos imediatos para saúde trans na prática geral. Nós precisamos impedir fisicamente voos deportando pessoas lgbt+ para serem mortas. Nós precisamos ocupar os terrenos onde prisões não-binárias seriam construídas.
Nós não devemos ter medo de sermos militantes, embora seja necessário entender os custos dessa militância e prover apoio emocional, financeiro e social para aqueles alvejados por represálias do estado. Isso significa que a militância nos protestos é a irmã de um trabalho de cuidado profundo em nossas comunidades e não é “o trabalho real”, e sim um aspecto do que precisa ser feito junto com educação, cuidado e ajuda mútua.
Obter vitórias significa construir alianças com movimentos políticos locais que não são centrados em pessoas trans, como nós falamos ao longo desse artigo. Pessoas trans politicamente engajadas não precisam lidar exclusivamente com questões trans. E há muito valor em, por exemplo, construir um sindicato radical e se certificar de que os compas por lá tenham um entendimento básico de questões trans.
Quando uma greve pode contar com o apoio de um movimento trans vibrante, barulhento e criativo, esse movimento também pode contar com o apoio de grevistas. Assim, os outros movimentos sociais também terão uma intersecção trans, assim como campanhas para desencarcerar mulheres mulheres precisam compreender a criminalização de diversidades de gênero, ou como ativismos de redução de danos para usuários de drogas precisam entender como seus recursos podem também beneficiar usuários trans.
De forma similar, também há um papel para ONGs e grupos ativistas moderados. Algumas formas de reformas nacionais na lei podem beneficiar vidas trans; ONGs podem se envolver, por exemplo, com o planejamento do fornecimento de serviços de saúde quando grupos de pressão não conseguem; e ONGs têm acesso a recursos muito maiores que também podem ser usados para fornecer apoio material.
O problema é que as ONGs tendem a se aproximar politicamente ao centro por causa de sua proximidade com o governo e os requisitos necessários para obter financiamento; elas tendem a ser muito engajadas em colocar representantes do movimento em conflitos midiáticos por causa das demandas das campanhas de lobbying; e tendem a se afastar das necessidades econômicas da maior parte das pessoas trans por causa das posições de classe de seus líderes.
Um movimento de libertação deve manter algum diálogo com organizações mais moderadas pagas, e não apenas atacar elas por trás de uma superioridade moral. Assim, nós podemos pressionar ONGs em direção a objetivos mais radicais a mantê-las conectadas às nossas necessidades mais urgentes.
Finalmente, entre isso tudo, nós precisamos cuidar de nós mesmos e uns dos outros. Trabalho político de libertação deveria ser alegre e nos nutrir, mas pode ser difícil, doloroso e cansativo. É muito fácil se esforçar demais e se desgastar. È muito comum que grupos se desfaçam porque eles não podem lidar com conflitos internos ou não lidaram com dinâmicas internas de poder e opressão. Organizadores individuais estão frequentemente sob o risco de serem atacados pelo estado ou por forças anti-trans.
Para indivíduos, eu recomendo praticar cuidado e atenção às suas próprias necessidades e capacidades junto com sua militância em movimentos. Em escrevi sobre uma série de possíveis causas, estratégias e desejos nesse artigo, e qualquer um que tente fazer tudo isso de uma vez vai se exaurir em um mês, como eu já fiz antes. Você não precisa fazer tudo sobre o que eu falei. Eu frequentemente tenho achado essas perguntas feitas por Mariame Kaba muito úteis:
Perguntas que eu faço a mim mesma quando estou indignada com alguma injustiça:
1: Que recursos existem para que eu possa me educar melhor?
2:Quem já está realizando ações lidando com essa injustiça?
3:Eu tenho a capacidade de oferecer apoio concreto e ajudá-los?
4:Como eu posso agir de forma construtiva?
Eu, por exemplo, tomei a decisão de apoiar um projeto local específico, que é um grupo de ajuda mútua trans e queer. É neste espaço que eu gasto a maior parte do meu tempo de militância, algumas horas por semana (ou uma quando estou muito cansada ou doente). Eu também sou filiada a um sindicato radical e contribuo financeiramente e promovo e compartilho suas mobilizações, mas eu decidi que eu não estou em condições de militar presencialmente de forma regular.
Eu escrevo para prisioneiros trans e mantenho contato com outros movimentos com os quais eu me importo, apoiando financeiramente quando eu posso, compartilhando recursos e fazendo algumas ações pequenas como assinar petições e escrever cartas.
De vez em quando, algum compa em um movimento social que eu me importo me pede ajuda em alguma área em que eu tenho conhecimento, para fazer apresentações para arrecadar fundos ou facilitar um debate sobre espaços seguros. Eu espero poder voltar para protestos logo.
Escrever esse artigo foi doloroso em certo sentido, porque o que eu descrevi é o que sou capaz de fazer, e tem muito mais que precisa ser feito. Toda semana eu encontro alguma ação política que precisa ser feita urgentemente, alguma reunião empolgante de que eu gostaria de participar ou uma nova organização se formando e eu começo a pensar em como eu poderia me envolver ativamente — e então eu entro em contato comigo e me lembro que eu não tenho essa capacidade, e a minha atuação é suficiente. Se você atua em uma das áreas que eu abordei nesse artigo e aprende a fazer isso bem, isso é mais do que suficiente. Você é suficiente.
Ao se tratar de grupos, eu preciso reforçar o quanto é vital desenvolver cuidado mútuo e responsabilidade em suas atividades logo no começo. Isso significa estar atento às necessidades e lutas de todo mundo envolvido e procurar apoiar a todos, significa estar disposto a se engajar honestamente com conflitos e buscar por resoluções, e também significa estar sempre disposto a refletir e aprender.
Às vezes, significa mandar para pessoas com quem você participa de mobilizações uma mensagem dizendo “Como você está?”. Recursos como o livro Mutual Aid (Ajuda Mútua) de Dean Spade ou os treinamentos oferecidos por Resist + Renew são fontes importantes de ideias e apoio. Algo que eu descobri ao longos dos anos, muitas vezes da pior forma, é que um grupo que se desenvolve devagar, cresce com cuidado e centra o cuidado coletivo é muito mais efetivo a longo prazo do que um grupo que opera de forma rápida e intensa, faz algo espetacular e depois se desintegra, levando alguns ativistas no processo. Enquanto mais nós cuidamos uns dos outros, mais fortes serão nossos movimentos.
Eu escrevi esse artigo porque estou cheia de raiva e esperança. Estou temendo pelas pessoas trans nesse país e internacionalmente, mas eu também vejo como nós estamos cheios de energia e possibilidades. Eu vejo muitas limitações nos mobilizações que nós fizemos até agora, especialmente nas minhas próprias. Então eu queria escrever um pouco do que eu vejo a partir da minha perspectiva e um pouco do que eu penso sobre o que vem a seguir. Novamente, isso não é um manifesto ou um menu de respostas, independente da forma que eu escrevi, mas uma coleção de pensamentos de uma pessoa trans com uma perspectiva específica. O melhor que eu posso esperar é que minhas ideias e ações estabeleçam diálogo e comunidade com as ideias e ações de milhares de outras pessoas, e que nós possamos olhar uns para os outros de formas belas e intensas, e que isso ajude a contribuir para a libertação de todos nós.
Resumo:
- Comece localmente construindo um grupo pequeno que pode conquistar pequenas vitórias antes de desenvolver uma rede nacional.
- Não tenha medo de ações militantes.
- Alianças com outros movimentos e trabalho crítico com ONGs também é importante.
- Você não pode fazer tudo. Escolha uma área em que você quer trabalhar e aprenda a fazer isso bem.
- Se nós conseguimos cuidar de nós mesmos e uns dos outros, nós conseguimos a libertação para todos